Nosso Norte é o Sul

Agosto 21 - Dezembro 4, 2021

Nosso Norte é o Sul tem como ponto de partida peças têxteis produzidas pelas culturas Inca, Huari e Nazca, na região dos Andes – que hoje abrange os territórios do Equador, Peru, Bolívia e Chile – relacionando-as à experimentação de formas geométricas das vanguardas do século XX e por diversos artistas contemporâneos na América Latina. São têxteis andinos, além de cerca de 30 artistas, que exploram a relação entre arte e ofício, apresentando um panorama da arte em nosso continente desde o período pré-colombiano até os dias de hoje. 

 

Com obras de:

Culturas Inca, Huari e Nazca, Afonso Tostes, Alfredo Volpi, Angelo Venosa, Aluísio Carvão, Amilcar de Castro, Antonio Dias, Celso Renato, Delba Marcolini, Emanoel Araújo, Fátima Neves, Franz Weissmann, Gabriel Orozco, Héctor Zamora, Hélio Oiticica, Ivan Serpa, Jandyra Waters, Joaquín Torres García, Jorge dos Anjos, Judith Lauand, Lygia Clark, Lygia Pape, Madalena dos Santos Reinbolt, Magdalena Jitrik, María Freire, Marioly Rosas Figueroa, Milton Dacosta, Mira Schendel, Montez Magno, Pedro Reyes, Rubem Valentim, Sergio Camargo, Sheroanawe Hakihiiwe, Vicente do Rego Monteiro, Willys de Castro.

Linhas latino-americanas: opostas, complementares, paralelas, perpendiculares
Tiago Mesquita
 
I
Tecer é uma atividade milenar na região dos Andes, na América do Sul. São diversas populações, com culturas, formações políticas, culturais e religiosas diferentes que se dedicaram e se dedicam à essa prática ao longo do tempo, sendo uma das tradições mais duradouras da produção visual. Se considerarmos apenas um período anterior à invasão espanhola, a técnica se mostra consolidada desde a instituição da cultura Chavin (c. 800 A.C.) até o fim do domínio Inca (1.532 D.C.) – só esse trecho compreende mais de dois mil anos de desenvolvimento ininterrupto em uma área que hoje passa pelo Equador, Peru, Bolívia e Chile. A trajetória, entretanto, é muito mais longa e segue até os dias de hoje.
É uma história difícil de ser contada, feita de diversos contatos interétnicos, conflitos e colaborações culturais e artísticas. Artífices de diferentes populações se apropriavam e transformavam os elementos do que havia sido feito antes. Motivos que tinham determinado sentido para determinada nação, ganhavam outros nas mãos de outras tecelãs. Uma maneira de tecer desenvolvida ali, era reinterpretada acolá. Uma tecelã de uma região de repente decidia combinar um padrão aprendido de outra época, e assim por diante.
Tal continuidade cultural fez da tecelagem em tal região uma produção inventiva e duradoura. Sua história resistiu a muitas guerras, à extinção de domínios, nações e ao genocídio da violentíssima invasão espanhola. Ainda hoje, várias sociedades da América do Sul desenvolvem e transformam vividamente esse repertório de técnicas, símbolos, narrativas, cores e maneiras de ocupar o espaço.
A mostra Nosso Norte é o Sul parte de um pequeno repertório dessa produção. São peças antigas, todas feitas no período pré-colombiano. A maioria dos trabalhos foi criada no contexto cultural Huari, mas há peças Nazca e Inca. Os artefatos foram feitos com finalidades diferentes, havendo túnicas de diversos tipos, painéis e tecidos pintados. O trabalho mais antigo foi feito no vale do Rio Grande Nazca, entre os séculos ii e iii da era cristã. Os mais recentes são duas peças da indumentária Inca de técnica sofisticada, provavelmente do século xv: um saiote e uma unkuna (um tecido para embalar coisas e corpos).
Formalmente, os trabalhos escolhidos para a exposição tendem à abstração. Há tecidos que partem de elementos simbólicos recorrentes ou formas ornamentais derivadas de figuras: são bicos de pássaro, cobras, personagens mitológicos e crânios. Contudo, nas obras que mostramos, a estilização de tais formas lida com elementos menos narrativos. Embora o caráter simbólico seja importante, também são relevantes, em um olhar mais distanciado, as maneiras de se contrapor cores, de se lidar com o espaço vazio, de se alternar ritmos na seriação dos elementos, de se incorporar síncopes e pequenas irregularidades.
 
II
Nosso Norte é o Sul pretende colocar a riqueza dessa produção ao lado de outras formas de pensar o espaço concebidas por diferentes criadores da América Latina. Assim, artistas de tradições andinas são unidos a artistas modernistas e outros a fim de se apresentar diferentes usos de formas simples, geometrizadas, para pensar a relação entre espaço, tempo e projeto, por exemplo.
É possível comparar o modo como diferentes tecelãs atuantes em populações andinas reinventaram e reutilizaram esse repertório de formas, mas também buscamos aproximar esse repertório às experimentações geométricas das vanguardas na América Latina dos séculos XX e XXI. A produção de arte para exposição feita no continente e a visualidade andina, antiga e moderna, se relacionam e se aproximam de diversas maneiras.
No começo do século XX, muitos artistas modernos se interessaram por esse repertório visual. Com níveis distintos de pesquisa e compreensão, encontraram nas diferentes produções uma maneira de se distanciar das envelhecidas linguagens acadêmicas europeias. Para artistas como Joaquín Torres García e Vicente do Rego Monteiro, o repertório decorativo de populações não europeias parecia um prenúncio de raciocínios construtivos. Anacronicamente, os artistas se identificavam com a compreensão de uma visualidade mais universalista. Uma resposta sul-americana, mais radical, às questões que as vanguardas europeias faziam à história da arte daquela época.
De modo otimista, os artistas uruguaios da Escuela del Sur, por exemplo, entendiam que as culturas milenares que existiam na América do Sul seriam portadoras de um modo mais moderno de elaborar a visualidade do que os esforços europeus. Assim, invertiam as perspectivas racistas da antropologia do século XIX. Se pensadores como Frazier e Gobineau associavam as populações não europeias ao atraso, à incapacidade cultural, esses primeiros vanguardistas sul-americanos viam em suas realizações, por remotas que fossem, uma promessa de futuro. O estudo dessas formas era uma empresa utópica. Uma tentativa de reorganizar o sistema das artes a partir de outro referencial geográfico.
Ainda assim, Torres García, especialmente, tem uma leitura a-histórica da produção pré-colombiana. O estudo dos andinos é motivado por uma aproximação que une os estilos em demasia. As perspectivas são consideradas pelo artista como ancestrais, míticas, espirituais, antigas e atemporais. Mesmo buscando um entendimento não europeu da arte a ser feita, esse entendimento é permeado por uma concepção clássica da produção andina como a reprodução de formas sacras de um passado imemorial.
A visualidade dos andinos é assim percebida como uma metafísica sem história, sem desenvolvimentos internos e tensões, destinada à repetição dos mesmos temas, com poucas variações. Contudo, tais temas continuam vivos, não só como um legado, mas como assunto.
Na época de Torres García, as tradições culturais andinas podiam ser observadas na produção visual moderna de diversas culturas não europeias. Era um acervo vivo, em transformação. Aliás, também era um acervo plástico. Por sobrevivência ou troca cultural, aspectos ornamentais das tradições nativas já haviam se instaurado, desde o século XVI, na representação cristã de grandes centros coloniais, como Potosí e Cuzco. Assim, embora tenha servido para a construção do ambicioso idioma universalista de Torres García, tal produção não é uma língua morta, em desuso.
 
III
Nossa exposição, portanto, é menos genealógica e mais um exercício de ligar pontos de contato. Contato entre idiomas geométricos vivos, em transformação. A partir das peças pré-colombianas, tensionamos formulações visuais geométricas, abstratas ou ornamentais sem origem marcada. A relação das obras de arte do passado com as da modernidade por vezes se dá a partir da proximidade cultural, formal, técnica ou mesmo a partir dos seus contrastes.
Ainda assim, alguns artistas dialogam explicitamente com o repertório formal de culturas indígenas antigas ou modernas. O artista mexicano Pedro Reyes, por exemplo, constrói a sua linguagem abstrata a partir de símbolos e concepções culturais de cosmogonias mesoamericanas pré-colombianas, como os Maias, Astecas e Olmecas. Para além do uso de formas, Reyes parte das narrativas tradicionais de populações antigas e tenta exprimir a sua experiência a partir daquele idioma.
Outros artistas desta exposição se valem do vocabulário de origem ameríndia, mas partindo de desenvolvimentos mais modernos. As obras Composição Indígena (1922), de Vicente Rego Monteiro, e Trilogia nº1, nº2 e nº3 (1967), de Montez Magno, partem da ornamentação indígena em seus desdobramentos modernos, como os feitos pelas ceramistas da Ilha de Marajó.
As formas trabalhadas por María Freire na série Sudamérica, embora não derivem de fontes explícitas, emulam aspectos da produção ameríndia. A artista procura um elemento sintético e decorativo como os atributos, por exemplo, da produção têxtil andina. Eles pretendem não ser precisos como a figura, mas gerais, como o arquétipo.
Outros artistas, como Rubem Valentim, Jorge dos Anjos, Madalena dos Santos Reinbolt e Magdalena Jitrik, trabalham com formas simples e regulares advindas de outras culturas sacras ou populares, sejam as religiões de matriz africana, a decoração da vida rural brasileira ou a visualidade dos trabalhadores industriais.
Nem sempre, contudo, as conexões são tão diretas. Há trabalhos, como os de Afonso Tostes, Amilcar de Castro, Celso Renato e Héctor Zamora, que se aproximam dos tecidos andinos por meio de relações diversas, como as que se dão entre trabalho, forma e material. São obras de artistas que utilizam formas simples e regulares, mas as encontram a partir de um contato mais áspero, do atrito com os materiais. Parecem trazer em si algo do esforço do artífice, do trabalhador, da pessoa de ofício. A relação com a técnica permite comparações ricas. Inclusive, os padrões e a tecelagem também são motivos de outros trabalhos aqui expostos, como os de Lygia Pape e Mira Schendel.
 
IV
Parte dos artistas desta coletiva são expoentes das vanguardas abstratas e geométricas da América do Sul. A despeito do produtivo contato entre os artistas argentinos do grupo Madí e a Escuela del Sur, de Joaquín Torres García, os desenvolvimentos da arte construtiva no Brasil, na Venezuela, na Argentina e na Colômbia parecem não ter necessariamente uma relação. Eles responderam a debates culturais próprios, olhando para as fontes europeias, em um esforço de renovação da atividade artística, em diálogo com outros campos criativos, como a arquitetura, a fotografia e o design.
No Brasil, a aproximação com as linguagens concretas europeias se deu em um período de urbanização, industrialização e modernização acelerada da economia e da sociedade brasileira. A renovação de linguagem, para muitos, era pensada com o esforço para se livrar do atraso e de todos os entraves de uma sociedade pobre, predominantemente rural, pouco escolarizada e subdesenvolvida.
O uso de um repertório mais simples era visto como a possibilidade de uma criação mais igualitária, que dispensava temas tradicionais pertencentes a uma literatura antiquada e típica. A arte não era mais dedicada ao desenvolvimento de habilidades meramente artesanais, mas incorporava novas técnicas e novas maneiras de organizar o material estético. Artistas como Judith Lauand e Ivan Serpa trabalhavam esses elementos mais regulares a partir de jogos sensoriais, que desfaziam relações hierarquizadas e convencionais de composição, como a posição marcada entre figura e fundo.
Em um momento imediatamente posterior, artistas como Willys de Castro, Hélio Oiticica, Aluísio Carvão, Lygia Clark e Amilcar de Castro abandonaram o uso pragmático do vocabulário construtivo no jogo da comunicação, elaborando relações formais assimétricas, usando materiais e cores menos gráficos, apostando em uma relação crítica e sensorial com a arte.
Para Lygia Clark, por exemplo, a questão estética fundamental é: a possibilidade de conhecer pelos sentidos, que se tornou uma rica problemática em sua obra. A partir disso, sua produção abandona um viés contemplativo e passa a propor formas que demandavam a manipulação e a participação do espectador. Em Relógio de Sol (1960), a obra se torna uma operação que mobiliza o tato, os gestos e a visão. O chamado “participador” move as partes articuladas dos trabalhos, formas geométricas presas por dobradiças, e tenta ordenar um objeto que resiste aos desígnios de quem o manipula.
A partir de Relógio de Sol e dos demais trabalhos da série Bichos, Clark passa a criar objetos e proposições que criam restrições ou ativam os sentidos. Em alguns, a intenção parece ser quebrar os vínculos automáticos que relacionam a visão ao tato, a audição e o olfato. As pessoas, então, redescobririam os sentidos, reconstruiriam os caminhos da percepção. Aos poucos, Lygia Clark vê essa reconstrução da “arquitetura viva biológica” como uma atividade com “sentido coletivo”. Seria como um ritual de liberação subjetiva.
Alguns têxteis andinos tinham sentido ritual. Serviam como elementos de articulação mítica e de reinvenção da memória coletiva. Por vezes, tal como a obra de Lygia Clark, isso era feito a partir da construção de formas geométricas ou geometrizadas. Talvez por guardar uns poucos elementos em comum, percebamos que um não poderia ser mais diferente do outro.
Elementos supostamente neutros, quando vistos em contextos distintos, perdem a sua proclamada universalidade. Assim, os usos daqueles elementos tornam-se mais históricos, particulares, contraditórios – portanto, mais interessantes. Interpretações mais idealistas, platônicas, gostam de imaginar que existem recorrências formais, simbólicas e narrativas. Elas seriam o eco de uma dimensão universal da humanidade, de um elemento fundamental da consciência, da espiritualidade, transcendental às mudanças culturais, históricas, sociais, geográficas. Embora esse texto não pretenda voos teóricos, não é demais afirmar que essa exposição toma um caminho oposto. O que interessa é menos as recorrências, mais as variações possíveis, os contrastes, as recomposições do uso das linhas no sul da América. A recorrência de formas, elementos plásticos, nos ajuda então não só a identificá-los, mas também friccioná-los.