Marcel Broodthaers: Décor

Abril 2 - Maio 28, 2022

 

Aqui brincamos todos os dias[1]

 

Repetição e rasura; escritura e imagem; cânones e ficções. Na aparente oposição desses termos, é possível localizar alguns dos principais traços que desenham o horizonte conceitual da produção de Marcel Broodthaers (1924-1976). Com grande dose de ironia, colocou em evidência a questão do gosto e a subscrição de uma assinatura. Sabendo que a finalidade dessa invenção burguesa sempre visou forjar uma ideia de singularidade, resolveu associá-la com o seu princípio oposto, o da tiragem ilimitada, no título La Signature, série 1, Tirage illimité (1969) – que, em contrapartida, se refere a um trabalho ele mesmo de tiragem limitada.

 

Broodthaers foi poeta até sua entrada estratégica no campo das artes visuais com Pense-bête (1964),primeiro trabalho escultórico a partir de seu livro de poemas que, imobilizados em gesso, adquirem tridimensionalidade.

 

Suas experimentações incidem, de saída, sobre a banalidade da cultura cotidiana, como vemos em trabalhos com panelas, frigideiras, carvão, mexilhões, cascas de ovo etc. Ainda que o pintor René Magritte (1898-1967), célebre artista belga com quem estabeleceu intenso diálogo, também tenha questionado a relação entre as palavras e as coisas, Broodthaers irá expandir esta reflexão para fora dos conhecidos limites do quadro.

 

Em meio aos convulsivos eventos de Maio de 1968, Broodthaers participou, com outros artistas, da ocupação do Palais des Beaux-Arts de Bruxelas, cujo intuito consistia em contestar o papel daquele museu na capital, ou seja, a relação entre arte e sociedade. Em setembro de 1968, resolve fundar, em sua casa, o Musée d’Art Moderne – Département des Aigles, seu projeto mais complexo e hoje visto como um divisor na história da arte do século 20.

 

Estruturado em doze seções, esse museu fictício tem seu encerramento decretado em 1972. Durante os cinco anos de existência, em paralelo às seções de seu museu (1968-1972), o artista produziu as placas industriais que constituem uma parte importante de sua obra. Broodthaers dedicou todo esse período a legitimar e denunciar, simultaneamente, o funcionamento das coleções e os mecanismos arbitrários do papel da instituição e, em última instância, da Arte.

                                                 

O aparato institucional da Arte seria identificado, assim, a partir de uma série de interdições e elementos operacionais que o constituem. Daí a produção de placas que emulam o sistema de sinalização, como as setas em Museum – musée, Section Cinéma (1971) que, espirituosamente, apontam para direções opostas. Os convites das inaugurações permitem acompanhar o perfil de sua missão, como em seu Musée d'Art Moderne, Département des Aigles, Section Cinéma (1971).

 

Ainda na chave institucional, Marcel Broodthaers introduziu o conceito de Décor, fazendo de cada exposição uma obra em si – donde o desafio constante de reunir peças soltas que possam ser novamente apresentadas como um conjunto organizado. Não seria exagero afirmar que o artista foi um exhibition maker, alguém que dominou tão profundamente a arte do display que conferiu à exposição um estatuto de linguagem, chegando a inserir no espaço trilhas sonoras para conectar palavras, objetos, palmeiras etc.

 

Entre os trabalhos mais representativos desse momento de sua produção, figuram Un Jardin d’Hiver [Um Jardim de inverno] e Ne dites pas que je ne l’ai pas dit [Não diga que eu não o disse], ambos de 1974. Este último consiste no arranjo entre uma gaiola com um papagaio-cinzento vivo, duas palmeiras e uma mesa sobre a qual vê-se o catálogo de uma exposição de 1966 que reproduz seu texto Ma Rhétorique, que, por sua vez, ecoa uma gravação do artista recitando: “Je tautologue. Je conserve. Je sociologue. Je manifeste manifestement.” [Eu tautologo. Eu conservo. Eu sociólogo. Eu manifesto manifestamente].

 

Texto e voz, objeto e imagem, bicho e planta sintetizam o esforço de Broodthaers em explodir os sentidos e abraçar trabalhos multimídia. Sobre isso, o artista comentaria: “Tenho procurado reacomodar objetos e pinturas, que foram feitos entre 1964 e este ano, com o objetivo de formar nas salas um espírito décor. Ou seja, com o objetivo de restituir uma função real ao objeto ou à pintura. O Décor não é um fim em si.”[2]

 

Marcel Broodthaers criou para si um sistema de signos recorrentes a partir de elementos que serão recombinados em diferentes suportes e situações. É o caso das moules – palavra ambígua que, em francês, designa tanto mexilhões como moldes – e das cascas de ovo que aparecem em diversas obras tanto apropriadas in natura como desenhadas, fotografadas ou escritas em textos. Outros exemplos podem ser encontrados nas cores da bandeira da Bélgica e no carvão de Trois tas de charbon [Três montes de carvão] (1966-67).

 

A repetição de imagens variadas de uma mesma figura em Bateau Tableau, que consiste em oitenta slides projetados, e o livro e filme A Voyage on the North Sea ambos de 1973, operam uma espécie de reunião iconográfica (pintura, fotografia e filme) de um mesmo motivo – uma pintura do século XIX – para construir uma imagem relacional e temporalizada: um barco ao mar.

 

Venho usando telas fotográficas, filmes e slides para estabelecer relações entre o objeto e a imagem desse objeto, além das relações que existem entre o signo e o significado de um objeto particular: a escrita.

M.B., 1968

 

A poesia visual acompanhou a produção de Marcel Broodthaers ao longo de toda a sua trajetória. Seu interesse pela linguagem escrita seguiu sendo nutrido e exercitado sobretudo através de trabalhos em que aproximações entre palavra e referente são tensionadas de maneiras diversas: seja em uma espécie de investigação da correspondência entre o elemento nomeado e o termo que o designa, como quando repete incessantemente a palavra pot [pote, recipiente] e desenha ao lado um pot; ou em uma espécie de exercício de confusão das correspondências quando escreve a palavra moules ao lado de imagens de ovos.

 

A imbricação da gestualidade com a escrita se vê tanto na sua caligrafia por vezes trêmula, rasurada e errante, quanto em trabalhos como La Pluie (Projet pour un texte) [A Chuva (Projeto para um texto)](1969), em que, debaixo de um temporal, a escrita se resume ao ato, já que quem escreve tem suas palavras diluídas e apagadas pela chuva, mas persiste no gesto.

 

Há, ainda, um frequente jogo entre o significante e o significado, como em Les Poissons [Os Peixes] (1975) quando, sobre a tela, vemos os nomes dos elementos que ali estariam retratados, e não a sua forma, incluindo supostos intrusos em meio aos “peixes”, notadamente o “ovo” ao lado dos “arenques”.

 

Ao ser questionado por seu editor acerca do motivo de publicar um livro, Broodthaers respondeu: “Para fazer dedicatórias e estabelecer essa relação arte/mercadoria.” Este diálogo integra a folha colada nas páginas iniciais da obra Vingt Ans Après, de Alexandre Dumas, escrito em 1845, cuja reedição como Livre de Poche em dois volumes é apropriada por Broodthaers em 1969, quando adiciona sobre os exemplares uma cinta com o seu nome.

 

Segundo a crítica Rosalind Krauss, se devêssemos nomear o principal medium de Broodthaers, seria a ficção.[3] Não se trata de mera coincidência, portanto, que o artista se valha de um romance do século XIX para intervir no imaginário da criação. Se o romance foi o “suporte técnico através do qual a ficção virou convenção durante o século XIX”[4], o artista amplificou seu campo especulativo, já que, usando suas palavras, “a ficção nos permite compreender a realidade e, ao mesmo tempo, o que ela esconde.”

 

O caráter inesgotável dos problemas abordados por Marcel Broodthaers em sua obra é o que nos convida à viagem: é como se, de alguma forma, estivesse tudo ali. Sempre bom lembrar quão carregada de humor é essa produção, conferindo leveza ao estranhamento que pode provocar. Seu recado não poderia ser mais jocoso:

 

À mes amis,

... peuple non admis. On joue ici tous les jours, jusqu’à la fin du monde."

M.B., 1968[5]

 

 

 



[1] “Aqui brincamos todos os dias, até o fim do mundo.” M.B., 1968

[2] Marcel Broodthaers, L'Angélus de Daumier, vol. II, 1975.

[3] Rosalind Krauss, A Voyage on the North Sea: Art in the Age of the Post-Medium Condition, 2000.

[4] Idem.

[5] “Aos meus amigos, ...demais não permitidos. Aqui brincamos todos os dias, até o fim do mundo.” M.B., 1968