Lenora de Barros: Não vejo a hora

Março 8 - Maio 13, 2023

Não vejo a hora

 Luisa Duarte

 

O tempo perguntou para o tempo quanto tempo o tempo tem. É com a escuta dessa indagação que a exposição Não vejo a hora, de Lenora de Barros, tem início. Está dada aqui uma pista da experiência que permeia a mostra, qual seja, aquela que traça uma especulação sobre o tempo em diálogo com a linguagem e o corpo. Se a atualidade nos endereça uma temporalidade colonizada, uma linguagem automatizada e um corpo anestesiado, as obras da artista aqui reunidas tratam de subverter tais imperativos, recordando assim a chance de darmos outros destinos para essa tríade que, no limite, forma o tecido das nossas vidas.

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Através da construção de símbolos reguladores numéricos, a consciência do tempo se desgarrou do que era múltiplo para se transformar em um modelo padronizado. Com isso, nos afastamos de uma contagem temporal associada, por exemplo, aos ciclos das estações e das marés. Em nome da garantia de produtividade e de uma ordem que independesse das intempéries naturais, os relógios mecânicos ganharam protagonismo. É justamente um fragmento desses dispositivos de controle do tempo que está no centro de diferentes trabalhos hoje apresentados.[i]

No vídeo Que horas são? (2023), uma chuva de ponteiros precipita por uma peneira e pousa sobre uma superfície de vidro, gerando uma miríade de estalos. Estamos diante de uma ação que busca decantar o tempo. Desprovidos de função e livres da resignada obediência aos relógios, caso pudessem responder à pergunta que dá nome ao trabalho, os ponteiros diriam: hora, que hora? Deixei essa forma de contar o tempo para trás. Se o enxame traduz o estilhaçar da contagem cronológica, Lenora sabe que não se modifica a relação com o tempo sem que ocorra uma mudança no vínculo do corpo com o espaço, por isso a projeção do vídeo no teto da galeria. Quase sempre apressados, tomados por um repertório de movimentos autômatos, nos vemos imbuídos por um olhar simultaneamente ansioso e disperso. Assim, todo chamado por uma alteração de ritmo deve passar, necessariamente, pelo corpo. Parar, sentar, quiçá deitar e, assim, adentrar a torrente de ponteiros e sua pergunta de fundo – que horas são? –, que surge, com um dado de surpresa, na voz de Hélio Oiticica.[ii]

O gesto que sinaliza cuidado, presente no ato de peneirar o tempo, comparece também em Previsão (2023), fotografia na qual duas mãos abertas acolhem, zelosamente, uma série de ponteiros. Enquanto os relógios remetem a uma maneira de prever o tempo baseada em um cálculo preciso, aqui se dá a remissão à crença de que seria possível “ler” as linhas da palma da mão e, assim, prever o futuro. Note como os ponteiros formam um traçado que segue os desenhos das linhas da pele. Aqueles que acompanham a trajetória da artista ao longo das últimas quatro décadas sabem da importância do corpo como depositário de uma certa grafia, de um certo texto primevo que está ali para ser lido como uma espécie de linguagem epidérmica que, portanto, gera um conhecimento tátil do mundo. Vale observar ainda como, nesse ato conciso, Lenora nos fala sobre ter o tempo nas mãos. Se o tempo parece sempre tirar mais de nós do que nós dele, ou seja, parece ser o sujeito, e nós o objeto, aqui ocorre o inverso.

Enquanto em Que horas são? o tempo foi transformado em uma torrente, na série de fotografias nomeada Nebulosas (2009-2023), o tempo se faz éter, formando nuvens de ponteiros que se camuflam como poeiras cósmicas gravitando no breu em meio ao silêncio.

 

Será somente na obra Camadinhas (2023) que os ponteiros como objetos, e não como imagens, se encontram na exposição. Se a vivência ordinária nos fala de pressa e desatenção, tudo aqui evoca o inverso. É preciso chegar bem perto, munido de cuidado, para ver as finíssimas lâminas de vidro nas quais pousam mínimos ponteiros, ao redor dos quais lemos, bem pequena, a palavra “já”. Lenora recorda que habitar o instante, o agora, requer, paradoxalmente, saber ralentar o tempo e tocá-lo com o zelo que somente as pontas dos dedos conhecem.

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Ainda na primeira metade do século passado, Walter Benjamin (1892-1940) nos mostrava a importância de estilhaçar os relógios, interromper o curso da história linear e assim redimir o passado à luz da urgência do presente.[iii] O jogo de reenvio entre diferentes tempos se encontra nas obras Vida e morte (2023), Quanto tempo o tempo tem (2009-2023) e Ventre (2023). Na primeira, testemunhamos uma dupla de retrovisores espelhados, bem próximos um do outro. Em um deles, está escrita a palavra “vida”, no outro, “morte” – uma refletindo a outra e projetando suas sombras na parede. Se concordamos que é a morte que traz o valor do tempo da vida, podemos pensar que, diante dos retrovisores de Lenora, somos lançados não no passado, tampouco no futuro, mas sim na dimensão fugidia e intensa dos múltiplos agoras que compõem a nossa travessia.

 

A trama que fala do presente em relação com a finitude continua na instalação sonora Quanto tempo o tempo tem (2023). Aqui, escutamos o diálogo entre duas vozes, uma delas de criança, outra de uma mulher adulta. Quem encena a conversa é Lenora (cuja voz foi distorcida intencionalmente para um timbre infantil) e sua mãe, Electra, já aos 90 anos, poucos anos antes de sua morte. Ao longo de três minutos, ouvimos uma troca do tempo consigo mesmo – o tempo perguntou para o tempo quanto tempo o tempo tem / o tempo respondeu ao tempo que estava sem tempo para falar de seu tempo, e que ao mesmo tempo não queria saber quanto tempo o tempo tem...

Sabemos como o tempo possui uma forte dimensão abstrata, não por acaso as famosas linhas de Santo Agostinho – “O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; porém, se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.” Ora, não há, ao menos ainda, sinal mais concreto do passar do tempo do que a morte de quem nos deu a vida e o envelhecimento do nosso corpo. Por isso mãe e filha encenam o astuto diálogo do tempo consigo mesmo. Note como aparece aqui um elemento fundamental da produção da artista: a voz. É na voz, aqueleponto de conjunção entre o sentido e a carne, que temos o índice maior do aqui e agora de cada pessoa, é dela que nasce um sentido não mais abstrato, mas sim amalgamado com a epiderme da linguagem. E será com o poder desviante do humor, outro traço marcante da obra de Lenora, que somos levados a visitar a conversa densa entre os tempos – no limite, entre a vida e a morte – com um rosto que sorri de soslaio.

Completa a tríade que endereça o reenvio entre passado, presente e futuro o políptico fotográfico Ventre (2023), no qual a artista manipula argila (uma certa erotização da experiência de mundo é uma constante em sua produção) sobre o fragmento de corpo onde é gestado o começo da nossa contagem de tempo na Terra.[iv]

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Dando continuidade à série desenvolvida desde 1990 em torno do pingue-pongue como receptáculo poético, Ping-Poems [da série Não vejo a hora] (2023) deslinda proposições para jogos de pingue-pongue imaginárioscom vias a subverter o tempo. No centro do trabalho, está uma mesa de pingue-pongue que teve suas feições originais alteradas, tendo uma metade do tampo espelhado e levantado, de tal modo que somos chamados a jogar com o nosso reflexo no espelho. Ao lado da mesa, caixas acolhem conjuntos de raquetes, redes, bolinhas, igualmente modificadas (cortadas, vazadas etc.). Cada caixa evoca um tipo de quebra cronológica: para atrasar o tempo / para dividir o tempo / para ultrapassar o tempo / para parar o tempo.

 

Longe de ser uma atividade inofensiva, todo jogo traz consigo um registro transgressor. Aquele que joga, que brinca, instaura ordem lúdica que escapa da lógica produtiva do capital. Não por acaso, a etimologia da palavra diversão está ligada à noção de desvio. Estamos no território do homo ludens, em contraposição ao homo faber, das horas improdutivas, em contraste com os dias úteis.[v] Ping-Poems [da série Não vejo a hora] faz parte desse universo que habita as antípodas tanto da vida administrada, quanto do lazer cronometrado.

 

Sabemos como o advento das metrópoles se coaduna com a aceleração temporal, assim como é próprio da experiência urbana um crescente embotamento dos sentidos. Para que seja possível conviver com a enxurrada de estímulos característica das grandes cidades, o sistema sinestésico inverte seu papel e torna-se, antes, de anestesia.[vi] É justamente na mão contrária de tal dinâmica, ativando o espaço público como lócus de encontro com o inesperado e nos fazendo ralentar o passo, que se dá o trabalho que dá nome à exposição, Não vejo a hora (2023). Instalado na fachada da galeria, na esquina da Avenida Paulista com a Avenida Angélica, um imenso led em movimento traz em letras vermelhas palavras relacionadas ao tempo: retardar, antecipar, perene, atraso, previsível, temporal, adiantar, distante, duração, posterior, anterior, temporalizar, avanço, espera, ultrapassado, demorado, contratempo, provisório, entretempo. Ao se apropriar de uma expressão usada no discurso coloquial brasileiro como uma espécie de ready-made, a artista mescla linguagem, temporalidade e faculdade da visão em um enunciado sintético. O fragmento pode ser lido como expectativa pelo porvir, recusa de enxergar o tempo, ou ainda como decisão deliberada de dar as costas para o passar das horas.

 

A introdução desse acontecimento poético justo no centro nervoso da Avenida Paulista – local onde convivem os tempos do capital, do social e da política – condensa muito do que Lenora de Barros nos endereça ao longo da exposição: um ato verbivocovisual cujo intuito é fazer o tempo dançar, ao invés de marchar.



 

[i] À luz da nossa vivência atual, podemos pensar que os smartphones cumprem hoje o papel que era ontem dos relógios, sendo que, como sabemos, os celulares são colonizadores não só do tempo, como também das subjetividades. Sobre os relógios, Julio Cortázar escreveu em seu Histórias de cronópios e de famas: “Quando dão a você de presente um relógio estão dando um pequeno inferno enfeitado, uma corrente de rosas, um calabouço de ar. (...) Dão a necessidade de dar corda todos os dias, a obrigação de dar-lhe corda para que continue sendo um relógio; dão a obsessão de olhar a hora certa nas vitrines das joalherias, na notícia do rádio, no serviço telefônico. Dão o medo de perdê-lo, de que seja roubado, de que possa cair no chão e se quebrar. Dão sua marca e a certeza de que é uma marca melhor do que as outras, dão o costume de comparar seu relógio aos outros relógios. Não dão um relógio, o presente é você, é a você que oferecem para o aniversário do relógio.” Já sobre a internet conjugada aos smartphones, Paul Preciado nos alertou, em seu Um apartamento em Urano: “Os aplicativos disponíveis na Google Play ou na Apple Store são os novos operadores da subjetividade. Lembre-se então de que, quando você baixa um aplicativo, ele não está sendo instalado em seu computador ou em seu celular, mas em seu aparato cognitivo.”

[ii] O fragmento no qual escutamos HO perguntando “Que horas são?” foi retirado de uma gravação feita entre HO e o poeta Haroldo de Campos, na 23rd Street, em Manhattan, em frente ao Chelsea Hotel, nos anos 1970.

[iii] Ver “Teses sobre o conceito de história”, de Walter Benjamin. “Assim, os calendários não marcam o tempo do mesmo modo que os relógios. Eles são monumentos de uma consciência histórica da qual não parece mais haver na Europa, há cem anos, o mínimo vestígio. A revolução de julho registrou ainda um incidente em que essa consciência se manifestou. Terminado o primeiro dia de combate, verificou-se que em vários bairros de Paris, independentes uns dos outros e na mesma hora, foram disparados tiros contra os relógios localizados nas torres. Uma testemunha ocular, que talvez deva à rima a sua intuição profética, escreveu: ‘Qui le croirait! on dit qu’irrités contre l’heure De nouveaux Josués, au pied de chaque tour, Tiraient sur les cadrans pour arrêter le jour.’” Está posta aqui, para Benjamin, a diferença entre a marcação de tempo cronológica-científica, própria do relógio, e aquela filosófica-histórica, ligada ao calendário. De um lado, o tempo vazio e homogêneo da história contínua; do outro, o tempo com fisionomia, do materialista histórico, marcado pela capacidade de parar o dia, parar os relógios, interromper o curso da história, acordar os mortos e redimir o passado à luz da urgência do presente. Trata-se, no limite, de livrar o tempo de uma concepção linear que acaba por sustentar uma história que não passa da perpetuação do ponto de vista dos vencedores.

Por isso, é preciso atirar nos ponteiros dos relógios a fim de interromper o fluxo das horas vazias. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da História. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Obras Escolhidas, vol. I. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 230.

[iv] Essa obra é um desdobramento em fotografia do vídeo A cara. A língua. O ventre. (2022). Sobre esse trabalho, ver: QUINTELLA, Pollyana. Numa outra corpo. Catálogo da exposição Minha língua. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2022.

[v] HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Editora Perspectiva, 2007.

[vi] Ver BUCK-MORSS, Susan. Estética e anestética: uma reconsideração de A obra de arte de Walter Benjamin. In: Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015. Artigo publicado originalmente em October, v. 62, out. 1992, p. 3-41.