Natureza-morta, still life, stilleven: o canônico gênero da pintura se desdobra, desde o século XVII na Europa, em inesgotáveis investigações. Sendo explorado não só na tela, mas em esculturas, instalações, fotografia etc., podemos atestar o seu vigor e atualidade com as obras que a Bergamin & Gomide selecionou para o OVR da SP- Arte 2021. Artistas tão distintos quanto Mira Schendel, Francisco Brennand, Glauco Rodrigues, Amadeo Luciano Lorenzato, Rivane Neuenschwander, Tiago Mestre, entre outros, se encontram ao se debruçarem sobre um mesmo motivo: interceder, reinventar, reelaborar objetos e elementos inanimados e de uso comum.
O crítico Meyer Schapiro, em texto de 19681, defende que, para além do interesse formal que os artistas nutrem em relação aos objetos em repouso do still life, há aspectos simbólicos e afetivos que transcendem o estudo sobre contornos ou a incidência da luz. A escolha desses objetos, o seu contexto, o estado em que se encontram, a paisagem com a qual se relacionam, a linguagem usada — tudo isso adiciona camadas de significação que enriquecem o sentido e a leitura das obras.
No século XVII, a supostamente simples reunião de plantas, frutas e suntuosas louças poderia indicar nada além de um estudo de composição, mas os atributos de cada um desses elementos retratados não raro buscam deflagrar a ação do tempo (frutas apodrecendo, folhas secando) e o vazio que consistiria no apego às coisas vãs, materiais, aos cintilantes jarros que estão ali para lembrar que a prata brilha, mas que tudo passa (pensemos em vanitas e memento mori).
Já para Cézanne, as famosas maçãs que povoam suas inúmeras pinturas dentro desse gênero têm história, que Shapiro traça desde a tela Le Berger Amoureux (erroneamente chamada de Le Jugement de Pâris, 1883- 85) para discutir a sua presença enquanto figuração do erotismo e do desejo, para além dos atributos formais. No século XX, por sua vez, Giorgio Morandi se destaca como pintor de still life ao se dedicar incessantemente à composição de jarros e garrafas cuja elegância e apuro do olhar inspiraram um sem-número de artistas. Isso se evidencia nesta seleção com as obras da série que Francisco Brennand fez em sua homenagem e com as garrafas de Mira Schendel, que em outras pinturas, sobretudo da década de 1950, explicitava sua grande influência nascomposições e cores que explorava. Ainda que Morandi fosse um observador e pintasse objetos do uso comum, o fundamento do seu interesse se encontrava em todo o sentido que pode ser agregado a elementos banais, ao real. É ele quem diz: “Eu acredito que nada pode ser mais abstrato, mais irreal, do que aquilo que podemos ver. As coisas não possuem um sentido intrínseco, mas os sentidos que atribuímos a elas.” Daí a melancolia, o silêncio e a elegância que suas “simples” garrafas podem emitir.
Dessa forma, as obras aqui selecionadas buscam corroborar a leitura de que a escolha dos artistas por dialogarem com um gênero tão tradicional dentro da história da arte conjuga justamente o interesse de se apropriar dos seus motivos, acima enumerados, integrando- os aos seus próprios recursos expressivos. Isso explica o efeito diverso que a abundância das frutas de Lorenzato e a síntese das frutas de Schendel causam no espectador; assim como as garrafas em cerâmica de Brennand, ainda que peças escultóricas, por vezes nos
soam menos sólidas do que aquelas de Giorgio Morandi que o inspiraram. Ou, ainda, encontramos entre a tela de Wilma Martins e o Vaso (2020) de Tiago Mestre duas maneiras distintas de trabalhar fundo e volume. Já Rivane Neuenschwander revisita o início dessa tradição ao interagir com o tempo em Still-Life Calendar (2000) — e Maria Leontina,no entrelaçamento de cores que promove em Natureza Morta (1951), explora a sua paixão pelas coisas do mundo, como comenta em entrevista de 1979 para Walmir Ayala: “Desde menina eu me apaixonava pelos objetos como os outros se apaixonam pelas pessoas.”
Still life poderia querer dizer, portanto, formas de tanger o tempo, o espaço e os elementos do cotidiano, deslocando-os e dando a ver alguma novidade. É o que a Bergamin & Gomide deseja demonstrar ao selecionar obras que datam de 1948 a 2020 e configuram um apanhado de releituras e diálogos com esse gênero.
1 Meyer Schapiro, The Apples of Cezanne: An Essay on the Meaning of Still-life (1968)