Amor é cor e abundância, é ver no mundo aquilo que se quer - não só o que há, mas o que pode haver (“Cego às avessas/ como no sonho/ vejo o que desejo”, diria Caetano Veloso): monte azul, bananeiras monumentais, coqueiros-cata-ventos. Sentar junto e olhar a paisagem, misturar todas as cores, abrir-se para a improvável beleza, colar ombros, braços e cabelos, experimentar o pertencimento: o casal alterna em seu corpo os tons que se repetem em seus entornos.
Branco, vermelho-alaranjado, azul, amarelo: o casal conversa sobretudo com a casa e com o chão. A natureza, redonda e opulenta, é afirmativa: eis uma pintura alegre. A palavra idílio remonta aos poemas líricos antigos que se valiam da brevidade e da simplicidade para tratar de temas bucólicos e pastoris no reino do amor. Como desdobramento, o termo ganhou acepções metonímicas, em que é entendido como sinônimo para a palavra “amor”, “fantasia” ou “utopia”, ou é utilizado para designar “relações entre namorados”, segundo o dicionário Houaiss. Tarsila do Amaral, então, pinta o seu próprio poema idílico e faz a sua contribuição para a tradição inaugurada por Teócrito no período helenístico da Grécia Antiga.
Embora produzida no ano de 1929, ou seja, durante a fase antropofágica (1928-1930) de Tarsila, vemos em Idílio uma recuperação de motivos e cores atrelados principalmente à sua fase “pau-brasil” (1924-1928), quando a artista, chegada de sua estadia transformadora em Paris no ano de 1923, passou a se preocupar em abordar na sua pintura as cores e paisagens do Brasil, elementos que até então eram ignorados em sua arte como consequência de sua formação acadêmica e europeizada.
Foi na fase “pau-brasil”, a partir de viagens que realizou para Minas Gerais e Rio de Janeiro, que Tarsila passou a trabalhar tonalidades até então consideradas “cafonas”, indignas de serem incorporadas à pintura, mas por ela consideradas brasileiríssimas: “Encontrei em Minas as cores que adorava em criança. Ensinaram-me depois que eram feias e caipiras. Segui o ramerrão do gosto apurado... Mas depois vinguei-me da opressão passando-as para minhas telas: azul puríssimo, rosa violáceo, amarelo vivo, verde cantante, tudo em gradações mais ou menos fortes conforme a mistura de branco.“
Assim, ao repetir suas formas e cores, Idílio se corresponde com telas como O pescador (1924, Museu Hermitage), Morro de favela (1924, Col. Particular) e O mamoeiro (1925, Col. IEB), ainda que nenhuma traga temática amorosa - aspecto, diga-se de passagem, incomum na obra de Tarsila, o que torna essa pintura única entre os seus trabalhos. Outro elemento importante a ser ressaltado a partir de nossos comentários sobre Idílio é que as fases de Tarsila não foram períodos estanques entre si, e sim interpenetráveis. Há uma coesão no percurso da artista ao longo da década de 1920, o que justifica a presença de elementos comuns em obras de períodos distintos.
Outro caso exemplar de conversa e entrecruzamento das fases da artista é o desdobramento da tela A Negra, de 1923: irmanada com a figura central de Abaporu (1928) na tela Antropofagia em 1929, passou a ser lida como prenúncio da fase antropofágica da artista ainda na primeira metade dos anos 1920. Idílio, portanto, é mais uma faceta da Tarsila brasileiríssima trabalhando com suas cores preferidas. Como escreveu Drummond no poema em sua homenagem:
“Azul e rosa e verde para sempre”.