Glauco Rodrigues Brasil, 1929-2004

Glauco Rodrigues nasceu em Bagé, no Rio Grande do Sul, e começou como autodidata, produzindo obras marcadas pela abstração. Em 1960, participou do IX Salão Nacional de Arte Moderna e obteve um prêmio que lhe possibilitou viajar para a Europa. Participou da II Bienal de Paris e, por convite da embaixada brasileira, morou em Roma entre os anos de 1962 e 1965, quando teve oportunidade de participar da XXXII Bienal de Veneza.

 

Glauco realizou um percurso semelhante ao dos artistas modernistas, como Tarsila do Amaral, mas foi através da Arte Pop, que iniciou sua volta à figura, ao mesmo tempo em 

 

De volta ao Brasil, Glauco passou a rever, de maneira iconoclasta, obras brasileiras clássicas como O Derrubador Brasileiro - D'après Pedro Américo, Victor Meirelles, Almeida Júnior e Pedro Moraes (1970), pintura que revela, como escreve Lilia Moritz Schwarcz, “as faces e expectativas de um país que se quer ver como desbravador e que gosta de se representar na base da (falsa) tolerância e de um suposto (e ilusório) pacifismo.”

 

Temas atribuídos à identidade nacional - a natureza tropical, o Cristo Redentor, o carnaval, as mulheres de biquíni, os indígenas, os negros, São Sebastião, o futebol, as lendas - dividem espaço com cenas retiradas da história do Brasil, como o índio na obra Menino Txucarramãe (1974) e o fruto tropical representado pelo mamão em Nave do Destino (1969), ambas as pinturas em que as figuras estão dispostas no característico plano de fundo branco de Glauco.

 

O processo antropofágico levou Glauco a traduzir e deglutir o Brasil a partir de suas pinturas, muitas vezes acompanhadas de frases críticas - aspecto marcante em seu conjunto da obra - como em Persona [da série Accuratissima Brasiliae Tabula] (1974) uma clara representação da crítica ao colonialismo e à exploração do território e população indígena pelo homem branco, e A Vontade das Circunstâncias [da série Economês] (1972) em que pinta as frases: "A corrida à exportação levará congenitamente um risco de perpetuação de má distribuição de renda" e "Exportadores de matéria prima e produtos industrializados que incorporem as 'vantagens' do uso extensivo da mão-de-obra barata".

 

Glauco impregna em suas obras uma espécie de carnavalização da cultura brasileira, com o uso de cores tropicais como o verde, amarelo e azul, que carregam humor combinados à crítica social, como na obra que empresta o título desta exposição, Porém, Acontece, Que Somos Canibais! [da série Visão da Terra - A Lenda do Coati-Puru] (1977). Inspirado na Lenda do Coati-Puru[1], Glauco produziu trabalhos emblemáticos criando uma analogia à ilusão de progresso durante a ditadura militar chamada de “milagre brasileiro”, que também está presente na obra Nossa Comida Abundando Está! Nº 1 (1977).

 

A relevância e atemporalidade da obra de Glauco Rodrigues, em que desfilam temas e mitos da vida brasileira, é narrada por Frederico Morais como uma obra em que é "Tudo canibalizado, deglutido e em seguida expelido na forma de uma explosão colorida, de um delírio visual", e torna-se ainda mais pertinente no atual contexto político-social brasileiro.

 

Em seu texto crítico, Lilia Moritz Schwarcz reitera: "nesses tempos tão distópicos em que vivemos, quando a realidade parece exagerada e surreal (mas infelizmente não é), quando a política vira espetáculo fácil de autoritarismo, onde o verde e amarelo foram sequestrados de uma parte importante da população, a ironia sutil de Glauco talvez esteja finalmente em casa e diga respeito aos tempos do agora. Esse tempo em compasso de espera e que se apresenta na forma de um presente sem futuro."

 

E finaliza: "O verde e amarelo somos nós! Tudo em sua obra é arte antropofágica, no sentido dado pelos povos ameríndios que fazem da comida um ritual de troca e deglutição, sem geografia certa ou tempo delimitado. Tudo deve ser digerido e vomitado, numa celebração da cultura brasileira que devora aos “outros”, mas também a si própria e a “nós” mesmos. Isso porque, “acontece que somos canibais” – verdes e amarelos, e tropicais."

 


[1] A Lenda do Coati-Puru conta que os índios Caxinauás passavam fome, comendo até terra para sobreviver, quando um Coati com poderes mágicos chega à aldeia. Através de um encantamento ele se transforma em homem e cria a ilusão de que os índios estão comendo legumes e frutas. A euforia toma conta da tribo e a única pessoa que sabe a verdade é a Mulher-Sozinha, que fica calada. O Coati torna-se então senhor único da aldeia e o poder lhe sobe à cabeça. Um dia, sentindo-se desafiado, manda castrar o marido da Mulher-Sozinha, que se revolta contando tudo para a tribo. Acuado, Coati foge levando consigo seus encantamentos, legumes e frutas, e a tribo retorna à miséria.