Julieta González
“O Brasil, hoje, está dividido em dois. O dos que querem estar a par, dos que olham constantemente para fora, procurando captar as últimas novidades (...) e dos que olham para dentro de si e em volta procurando fatigadamente nas poucas heranças duma terra nova e apaixonadamente amada, as raízes de uma cultura ainda informe, para construí-la com uma seriedade que não admite sorrisos. Procura fatigada, nos emaranhados de heranças esnobisticamente desprezadas por uma crítica improvisada que as definem drasticamente regionalismo e folclore”
Lina Bo Bardi, Francisco Brennand, 1961
Essa exposição toma como ponto de partida a involuntária (má) interpretação do trabalho de Francisco Brennand na ocasião de sua participação na 5ª Bienal de São Paulo em 1959. Brennand foi elencado entre os assim chamados artistas primitivos, provavelmente devido à natureza figurativa de suas obras, que assim iam de encontro às explorações vanguardistas da arte concreta e da abstração geométrica predominantes no Brasil da época. O ensaio do catálogo da Bienal que descreve a seção brasileira, escrito por Paulo Mendes de Almeida, afirma que se tratou do resultado de uma submissão ao júri, e que a tendência dominante era a da abstração, enquanto os trabalhos figurativos submetidos eram poucos, e a maioria feita por artistas chamados primitivos. De fato, enquanto muitos artistas brasileiros experimentavam com a abstração geométrica nos anos 50, em um tempo em que o país passava por uma transformação veloz, tentando alcançar os “50 anos de desenvolvimento em 5” de Juscelino Kubitschek, Brennand trabalhava em seu ateliê de cerâmica, fabricando pratos, placas e murais com motivos florais e vegetais; como os cajus, fruto nativo do Nordeste, que o rendeu a pecha de “pintor de cajus”. Essa empreitada solitária foi descrita por Lina Bo Bardi em um artigo de jornal sobre o trabalho de Brennand, relacionando-a com a proximidade às civilizações do litoral do Nordeste, indício de “uma inteligência camponesa e artesanal que procura na terra e na condição humana a sua expressão”, uma abordagem em relação à arte que foi mal compreendida pelo júri da Bienal de São Paulo. Bo Bardi menciona o incidente da Bienal, em seu artigo, como um sintoma da divisão entre aqueles que buscam um caminho de progresso e modernização e aqueles que cultivam uma relação com a natureza, os lugares e as tradições locais.
Realmente, Brennand optou por trabalhar contra a corrente da abstração geométrica, dedicando-se à exploração de formas primitivas e arcaicas. Ao longo de toda sua vida, desenvolveu uma linguagem pessoal independente das narrativas artísticas dominantes que informavam a arte de seus contemporâneos no Rio de Janeiro e em São Paulo. No mais, esse posicionamento se alinhava ao de outros artistas e intelectuais do Nordeste, de Cícero Dias a Ariano Suassuna, descrito por Lina Bo Bardi nos seus anos em Salvador como a busca por “uma cultura autônoma, construída sobre as suas próprias raízes”, em contraste à “inautenticidade de esquemas importados” que a seu ver dominavam a paisagem cultural do Rio e de São Paulo. A opinião de Bo Bardi baseava-se nas múltiplas mudanças que ocorrem em 1961, com as reformas de base de João Goulart, e com reavaliação das artes folclóricas e populares levada a cabo pelos CPCs e pela sua própria orientação ideológica. No entanto, parece que outros fatores também entram em jogo na escolha do caminho de Brennand, além das preocupações ideológicas, que essa pequena exposição procura iluminar.
Na ocasião da Bienal, Brennand apresentou três naturezas-mortas, uma das quais era uma homenagem a Ingres, pintada de modo aparentemente bruto, sem perspectiva, com elementos achatados em planos de cor. Essas pinturas podem dar uma ideia acerca das motivações de Brennand e o papel que o gênero natureza-morta veio a exercer em sua produção, assim como nessa exposição. De um lado, podemos enxergar a influência parisiense de artistas como Fernand Léger, mas, de outro, vemos a marca profunda deixada por um encontro que ocorreu logo antes do artista deixar o Brasil para seguir os estudos em Paris. Em 1949, Brennand passou alguns dias no Rio antes de embarcar no navio que o levaria à Europa, e lá encontrou com um jovem artista, Almir Mavignier, que o levou para visitar os ateliês que organizava com Nise da Silveira no Hospital Dom Pedro e no Engenho de Dentro. Ali, Brennand testemunhou em primeira mão o efeito que a pintura tinha sobre os pacientes e a arte particularmente potente que eles produziam. Foi profundamente impactado pelos trabalhos de Emygdio de Barros e Raphael Domingues, sobre quem escreveria em seu diário, particularmente sobre Raphael, cujas linhas ininterruptas pareciam fluir de tal modo que o trabalho parecia “psicografado”. Brennand perguntava-se: “Que estranho mecanismo a sua mente [de Raphael] aciona para chegar a esse nível de apreensão de imagens ausentes?” Ali, Brennand compreendeu que para artistas como Raphael e Emygdio o modelo certamente não importava, mas o que Mario Pedrosa chamara de “necessidade vital” era de fato central nas suas produções. Ademais, esse encontro deixou Brennand em um estado de perplexidade, já que no Engenho de Dentro ele descobriu “a existência de muitas coisas desconhecidas por completo, no próprio setor da arte que escolhera e também em relação à condição humana e aos seus desvios. Mas seriam desvios?” ele se perguntava, enquanto sentia-se “estranhamente diminuído e mesmo desorientado quanto ao meu aprendizado futuro” que ele receberia em Paris; “todas as regras haviam sido violadas”.
Essa experiência, logo antes de sua viagem a Paris, lançou Brennand em uma jornada pessoal motivada pela mesma necessidade vital que animava o trabalho de Emygdio ou de Raphael, jornada essa que o levou a muitos caminhos, salvo aqueles ditados pelo cânone modernista e pela abstração geométrica. Nesse sentido, talvez, podemos ler essa resistência à influência externa e ao moderno não como uma ingenuidade, mas como um desejo de reencantar o mundo. Face ao desencantamento do mundo provocado pela modernidade, para usar a expressão de Max Weber – isto é, a sua transformação em uma sociedade secular, burocrática e técnico-científica – a abordagem de Brennand parece dirigida a um reencantamento que implicaria em um retorno à natureza, às tradições arcaicas, e a uma visão alquímica que jaz na transmutação dos elementos e abre espaço para outras formas de vida, inclusive para objetos aparentemente inanimados.
Reencantando o mundo
‘Nós, ocidentais, somos completamente diferentes dos outros’, este é o grito de vitória ou a longa queixa dos modernos. A Grande Divisão entre Nós, os ocidentais, e Eles, todos os outros, dos mares da China até o Yucatán, dos inuit aos aborígenes da Tasmânia sempre nos perseguiu (...). Nas culturas Deles, a natureza e a sociedade, os signos e as coisas são quase coextensivos. Para nós, não deveriam nunca ser. Ainda que possamos reconhecer em nossas próprias sociedades regiões turvas na loucura, nas crianças, nos animais, na cultura popular e nos corpos das mulheres, acreditamos que é nosso dever nos extirpar dessas misturas horríveis.
Bruno Latour, Jamais Fomos Modernos (1991)
Uma reavaliação contemporânea da produção de Brennand exige uma retomada do léxico de formas que constituem sua linguagem artística: híbridos entre o mundo humano, vegetal e animal, ovos parindo serpentes, fontes de vida que emergem da fusão de pedaços do corpo e órgãos sexuais e uma inflexão animista preponderante correm por toda sua obra, particularmente pelas suas esculturas em cerâmica. Esse mundo imaginário que ele construiu para si, nas ruínas de uma olaria abandonada em Várzea, PE, é habitado justamente por essas “terríveis misturas” de que o mundo ocidental buscou extirpar-se; criaturas híbridas dos mitos que vagam pelas cosmogonias antigas e indígenas. Ademais, a natureza híbrida e animista do trabalho de Brennand parece pedir por uma leitura que situe novamente tanto o termo “animista” quanto o termo “primitivo”, tomando como ponto de partida a situação equivocada, ainda que fortuita, de seu trabalho entre os artistas primitivistas na Bienal de São Paulo. O termo animismo foi cunhado pelo antropólogo Edward Tylor em 1871 para descrever a atribuição da alma a objetos e entes naturais pelas culturas “primitivas”. Tylor coloca o animismo como o traço essencial da mente primitiva, isto é, o fulcro da Grande Divisão entre sociedades ocidentais e não-ocidentais, e é precisamente aí que Brennand decidiu escavar seu nicho, um lugar onde construir seu universo pessoal.
Sempre trabalhando na intersecção entre a escultura e a indústria de manufaturas, Brennand reativou os fornos da fábrica e montou uma pequena olaria artesanal que produzia azulejos e objetos utilitários (potes, vasos, bandejas, travessas de fruta, jarros, tigelas, pratos) com seus motivos florais característicos, que davam a ele e à comunidade de trabalhadores dali autonomia financeira e artística. Se, como colocam Adorno e Horkheimer em Dialética do Esclarecimento, “o animismo havia dotado a coisa de uma alma [e] o industrialismo coisifica as almas”, Brennand, na verdade, criou uma indústria onde os trabalhadores estavam longe de ser alienados. E esse mundo animista surgiu então do trabalho e dos fornos que produziam esses artefatos, objetos utilitários que nunca são o abordados pela representação épica mas que, em vez disso, são o tema central do mais baixo dos gêneros clássicos, a natureza-morta.
Honrando o espaço doméstico em que é apresentada (a casa projetada na década de 1930 por Flávio de Carvalho que agora abriga a galeria), essa exposição traça uma trajetória dos objetos cotidianos da natureza-morta aos seres míticos que ganham vida pelo poder sacralizante do fogo. Ao caminhar pela casa, onde tudo foi projetado com um objetivo (Flávio de Carvalho chegou a escrever uma série de instruções para seu uso) e onde os azulejos do piso representam os “cinco sentidos”, talvez outro aceno ao espírito animista minando o moderno, somos levados de uma cena “doméstica” a outras onde ao familiar se torna estranho: uma natureza-morta escultural, homenagem a Morandi, parece derreter e se deformar como se animada por uma vida interior; uma esfera é atacada por pregos gigantes; um bule enorme parece criar vários bicos e seios tornando-se uma criatura viva; um grande copo torna-se uma figura feminina vistosa; um vaso cria seios e órgãos sexuais femininos; uma torre brancusiana de jarros e recipientes torna-se um Ídolo... Nesse domínio doméstico singular, mesmo as bananas tornaram-se antropofágicas . Brennand reconhece uma orientação animista nesses trabalhos, particularmente numa série de placas produzidas no começo dos anos 1980, que se desdobram desde a implementação da natureza-morta em novos territórios novos e pouco familiares. As placas foram queimadas em diversas fornadas, inserindo objetos e ferramentas, experimentos que para Brennand eram um tipo de “soldagem com fogo, conforme as formas se fundem umas nas outras em cada queimada (...) e algumas das peças acabam mais próximas de amuletos ou fetiches do que de pinturas ou ornamentos. O fogo acaba as sacralizando”. No centro da sala, no âmago e no coração da casa, esse bestiário arcaico e alquímico dialoga com sua arquitetura, erguendo-se junto com a escadaria.
O próprio Brennand nunca usou o termo reencantamento, mas sua escolha por permanecer à margem do moderno, de criar um abrigo para o trabalho não-alienado no cerne de sua produção, de ressacralizar o mundo e soprar vida nas criaturas que estão no cruzamento entre os domínios naturais, eróticos e esotéricos, parece falar de um desejo de restaurar o encantamento a modernidade extirpou do mundo. Seus escritos e diário, que fazem a crônica de sua vida e obra desde o final dos anos 40, no tempo de seu importante encontro com Emygdio e Raphael no Engenho de Dentro, demonstram uma consciência extraordinária da interconexão entre mundos humanos, animais e vegetais; uma consciência ecológica apurada, e uma consciência dos perigos do progresso irrestrito e da industrialização desimpedida. Podemos perceber isso como uma nostalgia pelos tempos passados, mas curiosamente o artigo de Lina Bo Bardi rende mais uma leitura esclarecedora de Brennand conforme ela descreve sua semelhança inquietante com um artista medieval trabalhando com assistentes em sua oficina: “sua cerâmica simplificada: pratos e placas alinhados no chão e nas mesas da grande e velha casa de engenho em Pernambuco (...) transmitem um sentido de austeridade medieval. Uma sensação estranha, quase inapropriada, em uma terra tão longe dessa atmosfera. De repente, no verde das plantas, nos animais lentos, na paisagem, este estranho senso de Idade Média se caracteriza naquilo que ela teve de mais notável: a medida humana, o trabalho, os homens perto da natureza.” De modo algum devemos ler esse aspecto da obra de Brennand como uma idealização do espírito pré-moderno, mas como uma visada que nos permite identificar a possibilidade de um futuro pós-cartesiano, já pressagiado em sua prática como artista e artesão.
¹ Essa última obra não está exposta em São Paulo, mas na exposição concomitante no Instituto Oficina Francisco Brennand em Várzea, Recife.
²Refiro-me aqui ao Reencantamento do Mundo, de Morris Berman, que, entre outras coisas, analisa as teorias antropológicas e cibernéticas de Gregory Bateson, sua “ecologia da mente”, e propõe uma abordagem não-cartesiana como antídoto ao desencantamento do mundo da modernidade.