A individual de José Resende inaugura o segundo espaço expositivo da Bergamin & Gomide, a casa projetada em 1933 pelo artista e arquiteto Flávio de Carvalho. Tendo já exposto na Galeria Bergamin em 2005, esta é a primeira mostra do artista na galeria sob a direção de Antonia Bergamin e Thiago Gomide. A exposição conta com dois trabalhos que Resende produziu para a ocasião, um externo na fachada lateral e um interno que ocupa a área central da nave da Casa – além de uma seleção de obras que datam desde 1975. José Resende, também um artista arquiteto, se interessa pela obra de Flávio de Carvalho no que ela tem de original dentro projeto de construção da modernidade no país.
É com isso em mente que concebe as duas peças inéditas aqui expostas, na esteira de suas produções que dialogam intensamente com o espaço urbano e com a arquitetura. O trabalho concebido por José Resende para a área externa da Casa busca, conforme o conceito de site-specific formulado por Rosalind Krauss, interpelar o outro que circula pela rua de modo que essa construção, até então obliterada pelos edifícios ao seu redor, salte aos olhos mediante o estranhamento da sua presença em meio a uma paisagem banal – ou seja, a obra, uma vez ali instalada, aporta uma particularidade antes inexistente. Além disso, a peça dirige o olhar do transeunte para cima, o que contribui para que o chapéu de sol na cobertura da Casa seja mais notado. Para Resende, esse é um elemento importante da construção por rebater a forma do volume que está sob ele – que, por sua vez, também é rebatida na forma do degrau que fica ao nível do chão na frente da porta de entrada. Ressaltar esse deslocamento de planos ainda chama atenção para a coluna que parte do solo, atravessa o volume e vai sustentar a pequena laje circular do chapéu de sol.
A obra no interior da Casa se situa em seu principal cômodo. Quem entra vê apenas parte dela – em seguida, subindo a escada que leva ao piso superior, se tem uma visão lateral. Ao percorrer a estreita balaustrada que circunda o mezanino, é possível se ter uma visão à cavaleiro. Assim, ver o trabalho implica fazer um percurso passando por todos os principais espaços da Casa. Resende busca enfatizar ao espectador a intenção de, através da sua intervenção, propor um modo de se percorrer e perceber esse lugar. A escolha pelo latão como material de ambas as obras lhes confere uma conotação mais escultórica – distanciando-as do repertório da construção civil e fazendo, assim, com que se destaquem e se individuem no contexto da Casa.
Os trabalhos de José Resende, ainda que se realizem em técnicas e dimensões variadas, guardam procedimentos em comum que, como comenta Rodrigo Naves em seu texto Mágicos & Trapezistas (2021), norteiam a sua produção desde os fins da década de 1970. Entre eles está a noção de continuidade na estrutura das obras, que são construídas de modo que suas partes apareçam como um todo, sem evidenciar a secção e colagem dos materiais combinados de modo a compor uma peça única – o que se verifica, por exemplo, em uma de suas “esculturas lineares” datada de 1980: “É possível que saibamos que os tubos de cobre e de borracha pertenceram a unidades maiores, que foram cortadas, entrelaçadas etc. A direção e a flexão de dois tubos com maleabilidade opostas produzem, então, um passe de mágica: torna-se possível vergar um tubo de cobre sem amassá-lo, como se fosse feito de borracha”, diz Naves.
O que interessa a José Resende é estabelecer uma experiência autêntica com a matéria e com as tensões que cria ao distribuí-la no espaço, sem imputar símbolos e significados exteriores. É desse modo que o artista exerce aquilo que Rodrigo Naves identifica, dessa vez em texto de 1985, como um “entrave à prolixidade da expressão” – o seu poder de síntese é o que leva a sua obra longe. E quão longe! Contando com um currículo notável, Resende foi contemplado, em 1985, com importante bolsa da Fundação Guggenheim, expôs diversas vezes na Bienal Internacional de São Paulo (9ª, 17ª, 20ª e 24ª), na 11ª Bienal de Paris com menção honrosa, na 43ª Bienal de Veneza, na Documenta IX, na 11ª Bienal de Sydney e em importantes instituições nacionais e internacionais ao longo dos seus mais de cinquenta anos de carreira.
Dito isso, o encontro da obra de José Resende com a arquitetura de Flávio de Carvalho é um evento que nos atenta para o legado mais precioso do projeto modernista brasileiro, que se estende e se transforma através de artistas dotados de originalidade que ainda encontram ali direções e sentidos. Para José Resende, a Vila Modernista de Flavio Carvalho configura o marco histórico de um projeto moderno que visava fundar o novo homem, algo tão importante de ser lembrado em um momento de retrocessos políticos no país. Assim, os trabalhos de Resende, ao conversarem com o nosso passado, buscam nos lembrar de um futuro, aquele futuro em que acreditamos.