Norberto Nicola (1930 – 2007) trouxe uma abordagem inédita à prática da tapeçaria no Brasil, reivindicando a sua autonomia como linguagem artística. Ao fundar, em 1959, o ateliê Douchez-Nicola, enveredou-se, junto ao artista franco-brasileiro Jacques Douchez, na pesquisa e no aprimoramento das técnicas de tapeçaria, incorporando-a definitivamente ao seu trabalho artístico. Uma importante influência para o avanço das suas investigações foi o trabalho da polonesa Magdalena Abakanowicz, que Nicola e Douchez conheceram na VIII Bienal de São Paulo, em 1965. Abakanowicz é reconhecida pelos seus Abakans, título dado a uma série de trabalhos que a artista identificava como “situações têxteis”, tratando- se de estruturas tecidas que, unidas, formam instalações e reivindicam o não utilitarismo da arte têxtil. O contato com essas obras certamente impulsionou Nicola a lançar, em 1969, o seu manifesto Formas Tecidas – e a trazer a público, em exposição homônima na Galeria Documenta, o desdobramento das suas pesquisas. O que o artista concebeu como “forma tecida” é aquilo que o crítico Geraldo Ferraz chamou de “objeto-tapete” – obras tridimensionais que não se restringem à reprodução de contornos colados à parede, mas exercem expressividade a partir da sua própria matéria e estrutura. Linha, lã e crina se retorcem e se trançam através dos espaços criados entre os tecidos, evidenciando brechas, divisões e fraturas que geralmente são costuradas a fim de subverter a forma plana. O artista encontra na tapeçaria tridimensional a realização de suas inquietações enquanto criador, como diz em seu manifesto: “A tapeçaria que busco afasta-se da ideia tradicional de uma representação plana. Criamos um objeto tecido. (...) A fibra e o tecido possuem um volume com qualidades próprias de tensão, elasticidade, comportamento, enfim, um lugar no espaço.”
Até chegar aos seus objetos-tapetes, Norberto Nicola já vinha se consolidando na cena artística paulistana dos anos 1950, sobretudo a partir da sua entrada, em 1954, para o Atelier Abstração comandado por Samson Flexor. As experimentações influenciadas pelo abstracionismo geométrico de Flexor marcam estudos e estampas de suas primeiras tapeçarias, como nas guaches selecionadas para a exposição: produzidas entre as décadas de 1960 e 1970, seus Projetos e Estudos para tapeçaria trazem tons vibrantes e formas com intensos movimentos que fogem da rigidez geométrica ao mesmo tempo em que jogam com ela. Encontramos aspectos similares na obra Amazonas (1960), cujas curvas e linhas tramadas nos remetem desde a Anni Albers, grande artista tapeceira da Bauhaus cujos wall-hangings têm um ritmo particular, até Roberto Burle-Marx em seus murais e tapetes produzidos na década de 1960. São trabalhos engenhosos, que atraem os olhos pelo seu movimento e emitem, ao mesmo tempo, apuro técnico – características que, por sua vez, perduram e se estendem por toda a produção de Nicola.
O próprio artista diz sobre os transpassados das suas formas tecidas: “é uma coisa quase lúdica”. Na tapeçaria Ciranda (2002), tal aspecto se evidencia desde o título da obra, cujo círculo formado ao centro pelos volteios dos fios de lã nos remete ao jogo infantil, em que as mãos dadas das crianças encadeiam seus corpos girando em roda – o que vemos, então, é a transposição de toda essa imagem de modo inventivo e poético. Já em Xamã (1997) trata-se de uma potente alusão ao sacerdote que tem papel central na cultura dos povos ameríndios. A obra alude às suas vestes: crina e lã desfiadas e misturadas assemelham-se à pele de um animal vistoso que poderia ser usada para cobrir o corpo do mestre em seus rituais. A partir de peças como essa, vemos a influência que o extenso estudo realizado por Nicola sobre a arte plumária indígena exerceu sobre o seu trabalho (não só as penas, mas diversos elementos pertencentes à cultura indígena são absorvidos pela prática do artista). Em Esperança (2001), a sobriedade das cores privilegia as texturas e emaranhados dos fios. O título, a cor e sua estrutura conversam com outros trabalhos do artista, como Hora Azul (1984) e Azul Esperança (1999), o que revela mais um aspecto positivo da obra de Nicola: ela é coesa, isto é, seus motivos e seus temas não são aleatórios ou em vão, mas fazem parte de uma sólida e apaixonada pesquisa. Norberto Nicola cada vez mais ganha reconhecimento pelo artista inquieto e inventivo que foi. Seu encantamento pela tapeçaria fez com que se empenhasse em abrir os olhos do universo artístico brasileiro para a arte têxtil: após enviar uma carta à diretoria pleiteando a presença da tapeçaria brasileira no programa da instituição, foi o primeiro a expor um trabalho do gênero na VII Bienal Internacional de São Paulo, em 1963; foi idealizador e curador de inúmeras mostras e eventos sobre o tema, como a I Mostra de Tapeçaria Brasileira, em 1974, a Trienal de Tapeçaria, inaugurada em 1976, e o Centro Brasileiro de Tapeçaria Contemporânea, que presidiu na época de sua abertura, também em 1976. As obras de Nicola atestam toda essa dedicação e o seu amor pelo tear monumental que morava em seu ateliê. A sua famosa casa no centro de São Paulo, extensão do seu corpo e da sua mente, nos faz viajar no tempo entre plantas e relíquias, esbanjando seu fascínio pelas coisas singelas que a humanidade já produziu. Herberto Helder, poeta português, lembra-se em certo poema que
“os gregos antigos não escreviam necrológios, quando alguém morria perguntavam apenas: tinha paixão?”
Se Nicola com eles vivesse, responderiam na ocasião de sua partida: “tinha – e muita.”