Lorenzato: Paisagens

Fevereiro 9 - Março 19, 2022

Amadeo Luciano Lorenzato (1900-1995), ao comentar sobre seu processo criativo, declara: “Eu tenho que ver a paisagem, as coisas. Se não vejo, não pinto.”1 E o artista, a propósito, viu muito: nasceu e morreu praticamente junto com o século XX. O trânsito que experimentou entre o Brasil e a Itália permitiu que acompanhasse tanto a construção de uma capital – Belo Horizonte – quanto a reconstrução de cidades devastadas – como a Arsiero do pós-guerra, onde trabalhou entre 1920 e 1924. O conjunto da obra de Lorenzato, contudo, não se volta necessariamente para a ascensão das metrópoles industriais nem para os grandes embates da civilização. Ainda que tenha acompanhado fatos históricos influentes, o artista decidiu dedicar sua pintura a motivos singelos abordados com originalidade e vigor. Assim, como podemos notar nas cerca de 35 pinturas selecionadas para Lorenzato: Paisagens, o seu vocabulário se constitui de poentes, lagos, montanhas, fachadas, árvores, rios, naturezas-mortas e congêneres.

Em meio às paisagens que pintou, encontramos variações entre obras de caráter figurativo e narrativo e obras em que as figuras estão ali um tanto difusas, ressaltando o jogo entre as formas e as cores, em um flerte com a abstração. Além disso, vemos também inúmeras fachadas que nos transportam para os bairros periféricos de Belo Horizonte, feitos de casinhas que são a um só tempo coloridas e melancólicas. Mesmo em seus trabalhos sem título mais descritíveis, como os que mostram coqueiros entre lagos e montanhas de 1972, os canoeiros e banhistas entre rios e árvores de 1977 e 1987, e borboletas entre árvores e arbustos de 1977, ainda que tragam figuras e ações identificáveis, não se apresentam como reproduções fiéis de um cenário. Para atestá-lo, basta observarmos as escalas dos elementos retratados, seus contornos e correspondências: aqui, toda a visão é mediada pela imaginação.

Entre as obras em que as cores, texturas e linhas se sobressaem, chama a atenção a Represa de Furnas (1989). Os contornos e o azul do lago da Hidrelétrica de Furnas dominam o quadro, entre o verde das matas e o marrom das montanhas, de modo que cada cor assume uma função metonímica na composição. A maneira como essa paisagem é retratada – de cima – remete ao registro cartográfico, ao mesmo tempo que, se comparamos a pintura com o mapa da região, constatamos que não se trata exatamente de uma representação fiel de algum trecho do RioGrande (o rio represado para a criação do lago). O que, afinal, não surpreende, já que podemos perceber ao longo de toda a produção de Lorenzato a conjugação tanto de um interesse contemplativo quanto de uma postura descompromissada para com a mimese – talvez seja essa aparente contradição que demonstre por onde o seu declarado apreço pelos impressionistas lhe influencia. Também podemos identificar fenômeno semelhante em pinturas como Crepuscolo (1986) e outros poentes e/ou amanheceres não convencionais, em que as camadas e sequências de cores situam a cena retratada, como nas telas sem título de 1972 e 1989.

Ao pintar fachadas e pessoas, se interessa por cenas banais e ambientes nada suntuosos:apenas a reunião de amigos em um bar; apenas a multiplicação de casinhas de tons pastel subindo o morro. O que não é discreto nem corriqueiro, contudo, são os relevos e texturas que Lorenzato dá à superfície da pintura, recursos estéticos que remetem ao seu trabalho como pintor de paredes.Para tais efeitos, o artista se valia de ferramentas não convencionais à pintura, utilizando garfos e pentes sobre a tela ou qualquer outra superfície de que se servisse para pintar – já que, como ele mesmo dizia, pintava “em qualquer lugar: no papel, no cimento, no vidro, na telha, na tela, no papelão, compensado, chapa de Eucatex etc.”2

A exposição também proporcionará ao público o contato com esses utensílios cruciais ao processo criativo de Lorenzato. Eles detêm, por si só, uma expressividade notável, e hoje fazem parte da coleção do Museu do Cotidiano, em Belo Horizonte. Chamam a atenção os itens rústicos e não óbvios no âmbito da pintura artística: um pequeno pente de ferro que ele mesmo moldou; uma espécie de mini rastelo (ferramenta utilizada na jardinagem); objetos cortantes e pontiagudos como canivetes; pincéis grandes e imperfeitos – todos esses instrumentos remetem a uma apropriação por parte do artista da sua experiência enquanto pintor de paredes. Nesse momento, percebemos o rico cruzamento do seu ofício com a sua persona artística, e como esses dois âmbitos da sua vida se interpenetraram e enriqueceram a sua produção. É interessante pensar que Lorenzato viu todo o século XX acontecer, mas escolheu olhar para o lado comum (tanto no sentido do banal, quanto do elemento compartilhado) da existência.

É como se, de alguma forma, a escala das vivências cotidianas e a perenidade da natureza pudessem aplacar a barbárie presente em grandes disputas de narrativa e poder, sendo esse o cerne dos maiores conflitos que acompanhou. Após seu retorno ao Brasil em 1948, dedica-se cada vez mais à sua criação artística, constrói a sua casa no bairro Cabana, na periferia de Belo Horizonte, em 1960, e é lá que produz grande parte da obra que conhecemos hoje. Por vezes, uma borboleta em seu quintal bastava para que nascesse uma pintura – tantas outras vezes, longas caminhadas nutriam o olhar do artista-andarilho que, como todo grande criador, percebia e transfigurava à sua maneira o extraordinário do cotidiano.

O progressivo e legítimo reconhecimento de Lorenzato se fortalece neste momento: a editora Ubu está prestes a lançar importante monografia sobre o artista, organizada por RodrigoMoura. A Gomide & Co, portanto, reforça a estima pela sua produção, marcada pela realização de uma das primeiras individuais de Lorenzato na cidade de São Paulo E você nem imagina que Epaminondas sou eu, de 2014. Lorenzato: Paisagens é, desse modo, fruto de uma pesquisa expressiva, que durante 8 anos procurou agrupar um conjunto de obras significativo, e ao mesmo tempo distinto dentro de seu vocabulário pictórico. Uma ocasião única para celebrar a arte genuína de Amadeo Luciano Lorenzato.
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1 Circuito Atelier: Lorenzato. Belo Horizonte: C/Arte Editora, 2004, p. 30-31.
2 Documentário produzido pelo Circuito Atelier, 2004.