Niobe Xandó & Ernesto Neto

Junho 9 - Julho 30, 2022

O escândalo da mata

 

Mais belas que estas flores

 — mas muito mais belas — que florescem

atormentando mil verdes,

mais belas que estas vermelhas

incendiando o jardim,

onde mãos imprecisas

castigam querendo colher,

são as nunca nascidas,

são essas flores ocultas

em subterrâneo desejo.

Olga Savary

 

 

— tudo vive, dança e faz barulho

Ruy Duarte de Carvalho

 

Parece ser no lusco-fusco que a prolífica artista paulistana Niobe Xandó vislumbrou suas flores fantásticas: na transição entre o dia e a noite, quando as cores do mundo adquirem aspectos suspeitos e indóceis como em uma composição musical que modula de um tom maior para um tom menor, impregnando o ouvinte de um desconforto quase imperceptível. Neste jardim ou floresta que anoitece, as flores são mais que flores, mas flores-criaturas que parecem se auto deglutir ou sufocar os outros elementos dessas paisagens estranhas. Muitas vezes considerada uma fase intervalar na obra de Xandó, suas flores fantásticas revelam um pressentimento estético daquilo que se engendra secretamente em meio às folhagens — ou pinceladas. Na Flor fantástica VI, um matagal azulado e soturno envolve um ovo amarelo como se estivesse prestes a devorá-lo. Em sua Flor fantástica XXXI, uma robusta planta se avulta sobre um fundo arroxeado. É difícil distinguir precisamente as partes do vegetal: duas formas arredondadas no topo se assemelham a flores, algumas arestas verde-escuras lembram folhas espetadas. Na parte inferior da figura, uma forma oval e cindida introduz um senso de fertilidade, como se esta flor possuísse um ventre. De fato, em sua morfologia, as flores possuem tanto um ovário como um óvulo, partes do gineceu — o conjunto de seus órgãos reprodutivos femininos. As pinturas desta fase da obra de Niobe Xandó contemplam radicalmente o caráter sexual da estrutura e da gênese das flores.

 

As inconfundíveis gotas de Ernesto Neto, estruturas recorrentes no trabalho do artista desde os anos 1990, também invocam um teor uterino: a extremidade delas é uma barriga que carrega elementos da natureza: folhas de louro, especiarias, algodão, pedras, vasos contendo plantas. Espécie de edificação às avessas, essas grandes gotas de crochê que pendem de teias armadas no teto promovem uma inversão de perspectivas, dando impressão desestabilizadora de que o céu, assim como para as aranhas, também pode ser o chão. O crochê, recurso central para a construção de tais estruturas, permite a criação de peças que constituem uma zona de ambivalências formais: leveza e gravidade, flexibilidade e tensão, verticalidade e estiramento. Ademais, trata-se de uma técnica milenar e tradicionalmente feminina — mais uma vez, estamos diante de um universo gestacional e da proposição de uma outra forma de duração.

 

Dois de seus trabalhos mais recentes explicitam já em seu título essa abordagem anti-produtivista do tempo: Deslisa tempo, deslisa devagar e Parabolando o tempo por aí, de 2021, são ambas peças feitas de barbante e galho e que lembram ferramentas ou instrumentos — estilingues, arapucas, arco-e-flecha. No entanto, os objetos dessa série se desviam de qualquer propensão utilitária: se a princípio suas composições evocam instrumentos de medição, caça ou voo, logo deparamos tanto com a fragilidade e incompletude de sua estrutura quanto com o tempo ocioso proposto por seus títulos. Não é à toa que haja um erro ortográfico na grafia de “Deslisa” (e não “desliza”): esses objetos de Neto resistem à demanda do acerto ou do alvo — mas constroem parábolas, alegorias de um tempo menos voraz.

 

Em uma entrevista na qual relata seu encontro imersivo com o povo Huni Kuin, etnia ameríndia do Acre, Neto diz: “Há uma relação diferente com o tempo; eles têm tempo para esperar! Ninguém está com pressa”. Essa temporalidade que se irmana mais da fluidez do que do cálculo e do corte se traduz, nas estruturas e objetos de Neto, em uma atenção àquilo que há de mutável e transformacional na natureza (e no vínculo que é possível estabelecer com ela). Em Gota fogo sobre água, uma vela acesa se aninha no interior de uma gota verde de crochê de fio de algodão, pairando sobre uma poça d’água. A interação entre a água, o fogo e o algodão (representante da terra), reafirma a relação de reciprocidade entre os quatro elementos da natureza: lembremos que, para que haja fogo, é preciso haver ar.

 

Niobe Xandó também penetra decisivamente nesse reino de limites indistintos. Porém, parece atentar sobretudo para uma ferocidade secreta das plantas, como se, para evocar o título do romance de Clarice Lispector, estivesse “perto do coração selvagem”, onde a continuidade sobrepuja toda possibilidade de individuação. Se algumas das composições ainda rememoram a verticalidade dos arranjos de flores das naturezas-mortas (ainda que sempre desestabilizando as ideias de ornamento e passividade), outras parecem engolir a si mesmas, amalgamaram-se ou configurar uma gestação múltipla e desordenada — o caso de Flores fantásticas — releitura. No livro A vida das plantas, ao refletir sobre a reprodução sexuada das flores, o filósofo italiano Emanuele Coccia defende que “na flor, a reprodução deixa de ser instrumento do narcisismo individual ou específico para se tornar uma ecologia da condensação e da mistura”. Esse senso de continuidade está presente também no procedimento de Niobe Xandó. Em uma entrevista, a artista afirmou: “Sinto tudo como uma coisa só: eu, a tela, a tinta, o mundo selvagem que nos envolve”.

 

Em Flor-pássaro, esse hibridismo e a indistinção quase promíscua entre os elementos se radicalizam: sobre um fundo carmim, se espalham membros que pertencem simultaneamente a um pássaro e a uma flor: as pétalas se confundem com plumagens, as sépalas são também as asas, o bico do animal pode fazer as vezes de ovário floral. Daí ser pertinente associar tanto as estruturas de Neto quanto as composições de Xandó à noção de biogênese, princípio que se fundamenta na ideia de que todo ser vivo vem de outro ser vivo.

 

Se as pinturas de Xandó tendem a uma configuração desordenada e estranha da natureza, além de partirem de uma abordagem penetrante, sexual e aproximada dessas criaturas vegetais, os objetos e estruturas de Neto possuem uma dimensão ritual e quase alegórica: o artista conjuga diversos elementos simbólicos e cosmogônicos atrelados a culturas originárias ou diaspóricas — lembremos do título Iaiá kui arã naia, que condensa palavras de origem afro-brasileira e ameríndia. A presença das especiarias, por outro lado, além de despertarem prazer olfativo e fazer referência a uma dimensão curativa dos vegetais, também remete a uma história da colonização e do imperialismo, já que tais ingredientes, antes de chegarem aqui, eram mercadorias de alta lucratividade que animaram as expedições europeias dos séculos XV e XVI rumo às Índias. Trata-se, portanto, de espécies navegantes, que viajaram através de um tempo e espaços profundos.

 

Ernesto Neto nos coloca diante de uma floresta de sentidos e saberes, onde a articulação simbólica dos elementos atina para a possibilidade de uma outra forma de interação com o tempo, o espaço e os seres e a reprodução. Em uma espécie de poema, o artista sintetiza essa outra forma de vida que praticou junto aos Huni Kuin:

 

Troca como Transformação

área de contato

a área de contato é

um espaço de transformação

o contato transforma

a mistura de fontes de vida

celebrando a reprodução sexual

que vem nos misturando há séculos

[...]

o sonho é concreto

ele fala da realidade

se comunica através da noite

quando os espíritos dançam para nos mostrar

o caminho

 

As composições de Neto e Xandó talvez se cruzem no lusco-fusco da floresta que os instiga: no caso de Neto, ora as formas da selva pendem em gotas tão leves e permeáveis quanto robustas e repletas de ingredientes simbólicos e ancestrais, conciliando queda e suspensão, duração e fragilidade; ora, sob a forma de utensílios inúteis, enfrentam o furor do tempo da produtividade e nos convidam ao repouso. No caso de Niobe, que afirmou que “a violência do mundo” lhe parece “um desafio”, as formas se apresentam como vultos inconstantes, desordenados, tão florais quanto carnívoros: flores híbridas que se consomem, se desafiam, se rebelam — confundem-se, enfim, no êxtase secreto da noite fecunda e caudalosa da mata.

 

 

— Julia de Souza