Chico da Silva

Setembro 6 - Novembro 26, 2022

Sobre o ombro do inquisidor

Fernanda Pitta 

Nos mitos de origem da arte brasileira e de seus artistas, há frequentemente a afirmação de um gesto de "descoberta" - descoberta da "cor local", descoberta dos "temas nativos", descoberta de gênios desconhecidos. Críticos e artistas modernos "descobrem" artistas, como José Antonio da Silva, ou outro Silva, deste que tratamos agora - Francisco Domingos da Silva, mais conhecido como Chico da Silva. O vocabulário é evidentemente de herança colonialista e espelha constructos que revelam os processos de autocolonização que permeiam a história da arte no Brasil.

 

Os contos reiteram o mesmo ponto. A "fabricação" do artista se cria a partir de seu reconhecimento por alguém - com legitimidade no campo artístico - que, impressionado com o achado de algo ou alguém situado "fora" desse campo, catapulta esse achado a um lugar que o torna visível dentro de uma narrativa. Os críticos e a historiografia não reconheceram Chico da Silva como um artista capaz de autodeterminação e com a habilidade de se projetar na sociedade em seus próprios termos. Deste modo, as estratégias de produção e difusão que desenvolveu foram sistematicamente recusadas por esses agentes, pois não se encaixavam nas expectativas impostas ao artista.

 

Talvez valha refletir sobre como essa história foi contada por quem deteve o poder sobre ela. A história das institucionalizações, inclusive da arte, é também uma história de violências. A narrativa que se tentou impor a pessoas como Chico da Silva é a história dos critérios através dos quais procuraram capturar e confinar suas criações, seus modos de trabalho, suas estratégias de circulação. Os mesmos critérios fundantes dessa tal disciplina da História da Arte. Autoria e estilo são alguns deles. Então se procura definir a melhor fase de Chico, a mais "autêntica", separar a sua produção "autoral" daquela feita por seus colaboradores, aquela que se produz sob a orientação correta de Chabloz, daquela interpolada a "interesses comerciais", "deturpada" por "maus" marchands, "dissolvida" por "copistas" e "falsificadores", impactada por suas escolhas de vida e dilemas.

 

A história de Chico, aquela que conseguimos entrever "por sobre o ombro do inquisidor"[1] atesta, entretanto, que existem atravessamentos. Atravessamentos que constituem estratégias de resistência, de negociação, de sobrevivência.

 

Qual seria a história narrada do ponto de vista desse alguém de fora do sistema da arte estabelecido? Novamente é possível evocar o outro Silva, o Antonio, que contou sua história, diversas vezes, em versões que se imbricam, sobrepõem-se e escapolem. Chico da Silva, entretanto, não deixou nenhuma narrativa como os romances de José Antonio, e a mais direta a que temos acesso vem das respostas que ele deu a perguntas feitas por Heloísa Juaçaba, publicadas no catálogo do 4º Salão Nacional de Artes Plásticas do Ceará[2]. Sua história, portanto, só pode ser entrevista nas discrepâncias das narrativas construídas pela historiografia e pela crítica, contradições que surgem quando observamos sua paralaxe.

 

Chico da Silva pintou pelos muros de Fortaleza desde o início da década de 1940. Vindo criança de Alto Tejo, no Acre, para o Ceará, criou-se artista trabalhando com os materiais que foi inventando incorporar - tijolos, carvão - no suporte que decidiu experimentar, os muros da cidade. Em certa ocasião, resolveu se fazer encontrar com alguém que estava no seu encalço. A ele parece ter entendido ser estratégico se aliar. Era o artista e crítico Jean-Pierre Chabloz, um dos muitos estrangeiros vindos ao Brasil trabalhar para empresas internacionais - no seu caso, uma empresa suíça que, durante a segunda guerra, viera explorar borracha na Amazônia. Dessa relação, Chico obteve alguns ganhos, outros ônus. Escolheu mudar de suporte e de materiais, passando a pintar não mais nos muros, mas sim em folhas de papel, com guache. Com as obras que produziu a partir desse encontro, frequentou os Salões de Abril e o Salão Cearense, entre 1943 e 1944. Em 1945, foi ao Rio integrar uma exposição na Galeria Askanasy, com Antonio Bandeira e Inimá de Paula.

 

Fixado em Fortaleza, por alguns anos desenvolveu uma dupla estratégia de venda de sua produção - Chabloz a escoou pela Europa, enquanto Chico a comercializava no Brasil. É desse período o muito citado texto de Chabloz, "Un Indien brésilien ré-invente la Peinture [Um indígena brasileiro reinventa a pintura]" publicado na Cahiers D'Art, em 1952.

 

Ainda que as narrativas insistam em dizer que Chico teria, depois desse período, "desaparecido" para ser "redescoberto" pelo mesmo Chabloz em 1960, em sua volta ao Brasil, sabe-se que continuou sua produção, ao mesmo tempo em que se dedicava a outros ofícios como a sapataria e o conserto de fogões e guarda-chuvas. Desaparecido estava para aquele meio de arte, até que decide realizar sua primeira individual, em 1961, com 10 trabalhos. Peixe Taquari e os Anões, Gavião Real, Arraias da Amazônia, Serpentes das Lages do Rio, Peixe Paragô, Gavião da Mata comendo o Corveli, O Uirapuru, Iracema e seus peixes, Gavião Vipino, Sereias. Para um jornalista, nomeia ainda outros que considera os melhores de sua produção - Cristo Redentor, Guerra dos Bichos, Selvagens, Nagô, Uicover, além de definir aquilo que produz sob seus próprios critérios, afirmando que o que faz "é pintura, escultura, imaginação - Interbacia fachada da ira do pintor"[3]. Ou seja, está muito distante do rótulo de "primitivo" que lhe atribuem, pois elabora definições sobre sua própria prática e estabelece critérios de qualidade sobre sua obra.

 

Após a individual, passa a trabalhar no Museu de Arte da Universidade do Ceará, a convite do reitor que o conhecera antes da realização do evento. No Museu da Universidade fica por três anos, e lá organiza meios de produzir telas em maior quantidade, que escoam no meio social de Fortaleza. Deixa o museu por outro arranjo de trabalho, com o decorador Breno Albuquerque, e posteriormente com o comerciante Henrique Bluhm. É nesse momento que o artista desenvolve um ateliê coletivo, com aprendizes a quem integra em escala de oficina. Ao que tudo indica, Babá, Ivan, Garcia, Claudionor e Francisca trabalhavam nesse sistema de ateliê, sob orientação, portanto mais do que anuência, de Chico. Ainda está para ser melhor compreendido em que momento essa colaboração se torna um problema, e de que maneira a participação do artista num evento como a 33ª Bienal de Veneza, acatando o convite de Clarival do Prado Valadares, não surtiu numa "normalização" de Chico da Silva aos critérios legitimados pelo meio, pois é sintomática a insistência da historiografia sobre a qualidade da seleção de Valadares, como que a dirimir o tensionamento de seus critérios de autenticidade, problematizados pela iniciativa do ateliê. Sintomática é também a insistência dessa mesma historiografia em compreender sua produção mais tardia somente sob a ótica da vitimização e sob a sombra dos seus problemas de saúde e psíquicos. É esse o mesmo critério utilizado para debater a produção de tantos outros artistas contemporâneos que sabemos passar por questões semelhantes?

 

Para além de uma vítima de aproveitadores e ingênuos, talvez seja possível pensar que as estratégias de coletivização da produção de Chico da Silva, a adoção de assistentes, a formação de uma escola, a permissão para cópias e o interesse por uma disseminação que desafia os critérios aceitos pelos meios de arte estabelecidos constituam formas alternativas de compreender a circulação de uma arte sentida "no pensamento" do artista, uma pintura que era um contar e sentir histórias, e que sobretudo visava produzir alegria e contentamento no seu público.

 


 

[1] Tomo de empréstimo a expressão de Carlo Ginzburg, que em seus estudos sobre cosmologias camponesas medievais se utiliza de fontes produzidas pela inquisição. cf. GINZBURG, C. A Micro-História e outros ensaios. Rio de Janeiro: DIFEL/Bertrand Brasil, 1991, p. 206.

[2] Provavelmente ocorrido em 1973, a entrevista está reproduzida em ESTRIGAS. A Saga do pintor Francisco Domingos da Silva. Fortaleza: Edições Tukano, 1988, pp.93-94.

[3] ESTRIGAS, op.cit., p. 35.

 

 


 


 

 

 

O exercício contínuo da imaginação

Raphael Fonseca

 

Quando observamos a produção artística de Chico da Silva, algumas constâncias chamam a atenção. Diferentemente das obras realizadas na década de 1940 — parcialmente condicionadas no acervo do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza — onde vemos a constante relação entre corpos humanos e uma paisagem tropical, durante a década de 1960, chama a atenção a ausência quase total de figuras humanídeas. O seu universo é composto pelos mais diversos tipos de animais e seres fantásticos que, vez ou outra, de forma muito sutil, trazem certos traços antropomórficos. Em um segundo momento, é comum que, na maior parte de suas pinturas, vejamos duplas e mesmo trios destas figuras. Mais do que coexistir, esses seres parecem estar em situações de conflito, conversa ou até mesmo de celebração coletiva.

 

Um bom exemplo dessa leitura sobre seus trabalhos é uma tela Sem título datada de 1974 onde o artista representa dois galos apontando suas garras um para o outro. A obra faz parte de uma infindável iconografia encontrada no imaginário brasileiro durante o século XX: as rinhas de galos. Extremamente populares, o esporte perverso chegou a ser proibido oficialmente em 1961, mas sua prática perdura até a contemporaneidade. Se em uma tourada temos a equação do embate entre um corpo masculino e um animal dotado de uma viril carga simbólica, em uma luta de galos o embate falocêntrico se dá entre dois animais. Não existem meio vencedores nesse duelo; um dos animais estará fadado à morte.

Chico da Silva opta — assim como o faz em diversas de suas pinturas — por representar os animais remexendo suas penas e partindo para o ataque. A capacidade como o artista lida com a cor se faz visível não apenas na fisicalidade desses seres, mas especialmente no tratamento da figura e do fundo por meio de pinceladas que emolduram seus corpos. O uso do amarelo cria um fundo que se apresenta infinito (e abstrato) para a ação. Como se pode notar nas pinturas desse período — novamente, bem diferentes de sua produção da década de 1940 —, corpo e ação estão sempre em uma relação intrínseca. Não há espaço de repouso para esses animais, assim como não há quase nenhuma área de suas composições onde a cor não cintile perante os olhos do público.

 

Assim como esses galos guerreiam nesta imagem, na seleção de trabalhos expostos, percebemos cobras em conflito com pássaros, peixes de diferentes tamanhos em situação predatória, aves comendo peixes e dragões — outra curiosa obsessão de Chico da Silva. Aliás, essa observação merece uma indagação: seriam estes seres fantásticos dragões? Ou seriam répteis cuja identificação não se dá de forma imediata? Quais os limites entre a noção de representação e fantasia dentro da produção do artista? Faz-se necessário estabelecer fronteiras e analisar a sua produção de imagens de uma forma severamente binária?

 

O pintor parece, a todo momento, nos responder que não. Como escreveu Marcel Duchamp, há um grande “coeficiente artístico”[1] em suas imagens que há décadas fascina os espectadores e nos leva a leituras que, num piscar de olhos, se movimentam para outro lado, assim como a sugestão da direção dada pelas suas pinceladas. Dragões, dinossauros, lagartos, crocodilos e — por que não ser anacrônico? — Pokémons podem ser avistados em suas imagens.

 

Isso nos leva a recordar de uma das entrevistas dadas pelo artista onde ele irá afirmar, justamente, a importância da noção de imaginação para a sua pesquisa. Questionado sobre como planeja um quadro, Chico respondeu:

 

A arte eu sinto no pensamento; depois fico parado e imagino os peixes e os pássaros em movimento, e começo a formular as cores. Formular é um gesto, a senhora não acha? Pinto contando e sentindo a história do quadro para mim mesmo ou para quem me ouve. Dizem que minha pintura é folclórica porque eu pinto o que eu foco com os meus olhos, de acordo com os meus sentimentos. No caso dessa arte moderna, a arte de formulação dela é de engenharia. É projetada com o pensamento, mas pintada sem o sentimento... É uma pintura que às vezes pode ser rica e às vezes pode ser pobre...[2]

 

Interessante notar como o artista parece distinguir uma prática artística que tem relação com a noção de “pensamento” e “sentimento” em oposição à palavra “engenharia”, associada à “arte moderna”. É especialmente curioso como também nesta resposta ele parece refletir criticamente sobre como é lido como um “artista folclórico” em oposição àquilo que é dito sobre a prática de um “artista moderno”. Essa dualidade deixa bem clara as hierarquias, tensões sociais, geográficas, raciais e mesmo de classe, produzidas dentro do Brasil durante o século XX, essenciais para a invenção de uma “arte moderna brasileira”.[3] Como interpretar esse artista que veio de uma origem pobre, não-branca e situada entre as regiões Norte e Nordeste do Brasil como um artista moderno, parte de um panteão de nomes já institucionalizados em meados do século passado como Tarsila do Amaral, Candido Portinari e Lasar Segall?[4]

 

Chico da Silva era filho de uma mulher cearense com um homem peruano, possivelmente originário do povo Kampa. A pesquisadora Gerciane Oliveira — uma das poucas a dedicar um trabalho de pesquisa de pós-graduação ao artista no Brasil — em sua dissertação de mestrado analisa como muitas vezes a crítica de arte leu sua produção de forma unilateral, o categorizando como um “artista indígena”. Porém, como disse o próprio artista, “[...] esses mundos que eu pinto não são recordações de quando eu era menino, não; isso se chama imaginação, ciências ocultas, astronomia... Quando eu era pequeno, não via nada disso, vivia nos rios, de cima para baixo, com meu pai”.[5]

 

Em um presente histórico onde, finalmente, tantos artistas contemporâneos indígenas ganham protagonismo não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, nada mais justo do que o sistema das artes visuais — galerias, museus, colecionadores e afins — voltarem seus olhos para Chico da Silva. A pergunta que podemos lançar por agora é: como abordar sua obra de modo igualmente imaginativo? Como não ler a sua produção pela chave de uma história única, resguardando toda a recepção de sua obra à chave interpretativa (e por vezes genérica) do “artista indígena”? Como fazermos jus à sua obra e criarmos leituras de suas imagens que multipliquem a sensação de maravilhamento que sua obra proporciona? Como observá-lo em diálogo com seus vizinhos artísticos?

 

Repito uma pergunta que fiz em outra publicação recente: e se Chico da Silva fosse visto como um dos grandes cromatistas da história da arte no Brasil?[6] E se olhássemos as suas obras não apenas em diálogo com as pinturas de Jaider Esbell, mas também ao lado dos igualmente movimentados e coloridos quadros de Antonio Bandeira, próximo tanto do seu círculo social, quanto temporal? E se cruzássemos sua obra com o pintor amazonense Moacir Andrade e com nomes mais recentes interessados na relação entre formas orgânicas, abstração e cor, como Beatriz Milhazes? E se analisarmos a sua produção para além dos limites fictícios do Brasil? Quais coros de vozes poderíamos encontrar?

 

Há muito por se fazer quando o campo de pesquisa é a produção de Chico da Silva. Felizmente, suas telas, papéis, palavras, animais e seres fantásticos nunca estão inertes e nos convidam a um exercício contínuo da imaginação.

 



 

[1] “… na cadeia de reações que acompanham o ato criador falta um elo. Esta falha que representa a inabilidade do artista em expressar integralmente a sua intenção; esta diferença entre o que quis realizar e o que na verdade realizou é o ‘coeficiente artístico’ pessoal contido na sua obra de arte”. DUCHAMP, Marcel. “O ato criador” in BATTCOCK, Gregory. A nova arte. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998, p. 73.

[2] ESTRIGAS. A saga do pintor Francisco Domingos da Silva. Fortaleza: Edições Tukano, 1988, pp. 93-94.

[3] Não nos iludamos – todas essas tensões seguem essenciais para também se forjar a noção de uma “arte contemporânea brasileira”.

[4] Essa pergunta e esse estranhamento é justamente aquilo que levou, por exemplo, o artista e crítico de arte cearense Estrigas a intitular seu livro sobre Francisco Domingos da Silva por “A saga do pintor”; não se tratando de um artista que se encaixava facilmente na construção hegemônica da figura do artista visual (e do pintor) no Ocidente, nada mais justo do que enxergá-lo como o personagem central de uma saga, de uma epopeia que também é reflexo de outras tantas narrativas anti-heroicas escritas no Brasil.

[5] Consultar OLIVEIRA, Gerciana Maria da Costa. Chico da Silva: Estudo Sociológico sobre a Manifestação de um Talento Artístico, dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal do Ceará, 2010.

[6] Refiro-me aqui à introdução da publicação referente à exposição “Raio-que-o-parta: ficções do moderno no Brasil”, realizada no SESC 24 de Maio, em São Paulo, em 2022. A mostra contou com curadoria de Aldrin Figueiredo, Clarissa Diniz, Divino Sobral, Fernanda Pitta, Marcelo Campos, Paula Ramos e minha.