Marcone: o tempo do fazer suado exausto
por Aracy Amaral
1. Celebrar o trabalho mesmo que inadvertidamente a motivação emergindo quando observamos a série de realizações/ opções ao longo do tempo parece ser o desdobramento da obra de Marcone Moreira.
2. Difícil escapar da indagação: qual afinal o começo de um artista? Como desperta o desejo o impulso do fazer? Vendo os outros em atividade? Olhando em casa fazendo? A atração por muros carvão ou materiais lápis caneta papel e aquarela? Observando as coisas à volta? Anotando mentalmente o que vê? Ajudando acompanhando os outros construindo? À medida que a mão obedece à vontade o desejo de fazer mais fazer melhor ou acrescentar. A busca por outros materiais.
3. Madeira. Vendo muitas coisas de madeira à volta. Tocando as coisas sentindo sua superfície sua temperatura sua procedência. Móveis casas bandeiras mastros barcos. Fragmentos de barcos. Construções. A vontade de mexer desconstruir descobrir o processo ou como é feito.
4. Fascínio pelo cartaz de rua abandonado “adivinhando” a pintura descorada usada raspada dando lugar à outra nova visualidade. A vontade de cortar esses fragmentos usados reconstruindo-os em composição inesperada divorciada da primeira ou segunda ou terceira versão.
5. No processo de desconstrução: a beleza em si do fragmento. O todo separado em partes encerra um segredo beleza antes oculta impensada.
6. A surpreendente remontagem. Visualidade emergente nos fragmentos recortados geometricamente. A assepsia da composição emergente.
7. Encantamento da cor da matéria vivenciada no tempo. Resgate do tabuleiro manual de xadrez ou jogo de damas. Na beleza dos quadrados inseridos no quadrado elegância da simplicidade bicolor dos mesmos quadrados impecavelmente desenhados no plano da partida.
8. Nobreza do trabalho em madeira executada pela mão do homem nos porretes ou cepos. O corte que fere o lenho em “Ver o Peso”. A mão feminina repetindo a quebradeira de coco ou babaçu. Ou o olho captando a madeira ferida machucada. Ou que observa desejando refazer o processo. O tempo do trabalho: o fazer suado exausto do gesto repetido.
9. A motivação é do calor do ritmo da luz da cidade da periferia do povoado da oficina do vizinho que faz. O fazer é o reflexo daqueles que igualmente se apropriam das mensagens detritos comunicacionais remontados fascinantescoloridos urbanos suburbanos fluviais espaciais poderosos na imensidão verdejante.
10. A forte motivação que têm todos os artistas do Norte a contaminação de um meio e suas raízes poderosas seja do ponto de vista de cor como do espaço em que vivem – mestres observados desde Rui Meira e fotógrafos como em particular Luiz Braga ou um artista como Emanuel Nassar. Além de Marinaldo Santos e tantos outros - claro que também presentes no desenvolvimento de Marcone Moreira. Impossível escapar da potência de realidade ambiental que os impregna tão densamente.
11. Marcone Moreira nos chega das bordas desse universo imenso de vegetação dominante se debruçando com regularidade oscilante e curiosa nos universos suburbanos e ditos urbanos – que ele talvez acredite de sensibilidade cultivada. Vem sempre indeciso se a estes últimos adere e se converte em neo-habitante. Ou se retorna fiel – como sempre o faz – à sua “aldeia”. Onde o equilíbrio lhe pode talvez parecer mais verdadeiro.
12. Neste ponto recorro a um trecho do crítico britânico sir Herbert Read – de quem Mario Pedrosa era grande admirador – quem registrou que “As pessoas que fazem coisas – não tenho evidência além de minha própria observação – parecem menos suscetíveis a colapsos nervosos, e uma das formas reconhecidas de tratamento para problemas mentais é conhecida como ‘terapia ocupacional’. Ninguém sugeriria que a função da arte seja meramente manter saudáveis as pessoas; mas ela tem seus efeitos subjetivos. O artista não apenas cria um objeto externo a si: ao fazê-lo ele também reorganiza vitalmente o equilíbrio de impulsos dentro de si”.
E ainda prossegue nesse texto: “Nosso olhar em relação à função social da arte portanto reforça o conceito libertário da arte. Todos os tipos de arte não são meramente permissíveis, porém desejáveis. As necessidades da sociedade compreendem, não apenas a estrutura externa num mundo para se viver, mas também uma estrutura interior de uma mente capaz de usufruir a vida”. E termina esse pensamento: “Devemos em consequência buscar métodos de estimular o artista – o artista latente dentro de cada um de nós”. (Herbert Read, To Hell With Culture, Schoken Books, New York, 1976, p 123, trad. da Autora).
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EN
Marcone: an exhaustingly laborious art-making
by Aracy Amaral
1. Celebrating work even if inadvertently the motivation that emerges from viewing the series of works / options over time seems to be a development of Marcone Moreira’s work.
2. The question can hardly be dodged: What is an artist’s starting point after all? What drives their impulse to create? Watching other people’s activity? People in their own home? Being drawn to walls and paper charcoal pencil pen or watercolor? Observing one’s surroundings? Making mental notes on what one sees? Helping and accompanying others in the process of construction? As far as the hand indulges at ease the need to make more and better or newer things. The quest for different materials.
3. Wood. Seeing many wooden objects around. Touching them feeling their surfaces and temperature and provenance. Furniture houses flags masts boats. Parts of boats. Constructions. The urge to tinker deconstruct and discover the process or how something is made.
4. Fascinated by disused street poster “guessing” the faded paint used scraping it off to give rise to another new look. The urge to cut these used pieces by reconstructing them in unexpected composition unrelated to the first or second or third version.
5. In the process of deconstructing: the ultimate beauty of the fragment. The whole separated into parts contains a secret previously hidden and an unthinkable beauty.
6. Amazing rebuilding. Emerging visuality in geometrically sectioned parts. The emerging composition’s asepsis.
7. Allure of the material’s color experienced over time. Rescued handmade chess boards or checkers boards. The beauty of squares over squared elegance of two-color simplicity of the same squares impeccably drawn on the game surface.
8. Noble nature of handmade woodwork in clubs or stumps. Strokes that cut wood in Ver-o- Peso marketplace. The female hand repeatedly splitting open coconuts or babassu palm. Or the eye spotting injured or wounded wood. Or merely observing while wishing the process is repeated. Art-making: an exhaustingly laborious time of repeated gestures.
9. Motivation generated by the warm rhythm of city lights from the creative neighbor’s workshop on the outskirts of the settlement. Making art is a reflection of those who also appropriate scrap media messages rebuilt fascinating urban suburban fluvial spatial powerful colors against the immense greenery.
10. The strong motivation of all artists in the north of Brazil from contamination of a medium and powerful roots regardless of point of view of color or their living space – great masters observed beginning with Rui Meira and photographers such as Luiz Braga in particular or an artist such as Emanuel Nassar. Besides Marinaldo Santos and many others found in Marcone Moreira’s development. It is impossible to escape the potency of environmental reality that pervades them so densely.
11. Marcone Moreira comes to us from the edges of this immense realm of dominant greenery addressing with curious and oscillating regularity suburban universes and so-called urban realms – that show cultivated sensibility or so he may think. Always undecided as to whether to join them and become a neo-habitant. Or faithfully returns – as always – to his ‘village’ where balance may seem more genuine.
12. On this issue I turn to a passage by Sir Herbert Read – the British critic who Brazilian critic Mario Pedrosa particularly admired – who stated: “The people who make things – I have no evidence beyond my own observation – seem less liable to nervous breakdowns, and one of the recognized forms of treatment for mental illness is known as ‘occupational therapy’. No one would suggest that the function of art is merely to keep peoplehealthy; but it has its subjective effect. The artist not only creates an external object to himself: in doing so he also vitally rearranges the balance of impulses within himself.”
Read further added that “Our glance at the social function of art therefore reinforces the libertarian conception of art. All types of art are not merely permissible, but desirable. The needs of society comprise not only the outward structure of a world to live in, but also the inward structure of a mind capable of enjoying life.” And he concludedwith this reflection: “We must therefore search for methods of encouraging the artist – the artist latent in each one of us.” (Herbert Read, To Hell with Culture. New York: Schoken Books, 1976, p. 123).