texto por Lilia Moritz Schwarcz
Chega em ótima hora a exposição Acontece que somos canibais que traz as obras da fase pop do artista Glauco Rodrigues. Num momento em que grassa o obscurantismo; em que temos sido lesados por uma crise que é política, econômica, moral, cultural e da saúde; em que vamos sendo invadidos por uma patriotada fácil e que sequestrou os nossos símbolos nacionais; em que tomamos um golpe a cada dia, nada como o humor satírico e crítico do artista gaúcho que, com suas cores fortes, seus desenhos em série, seu fundo branco infinito fez política a partir da arte. Política com muita arte.
Glauco Rodrigues (1929-2004) nunca coube numa caixinha ou numa definição fácil. Nascido em Bagé, no Rio Grande do Sul, ele começou na profissão como autodidata. Logo recebeu sua primeira bolsa de estudos ofertada pela própria prefeitura da sua
cidade e passou três meses na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro (ENBA), que aglutinava velhos, mas também, novos talentos. De volta, funda em 1951 o Clube da Gravura de Bagé junto com os colegas Glênio Bianchetti e Danúbio Gonçalves. O grupo, que tinha em comum claras simpatias pelo socialismo, passou a se dedicar à figuração, retratando paisagens da região, num ambiente basicamente rural.
A convivência com os amigos pintores fez com que Glauco resolvesse se dedicar às artes visuais, profissionalmente. Muda- se então para a capital de seu Estado e participa do Clube de Gravura de Porto Alegre, fundado por Vasco Prado e Carlos Scliar.
Em 1958, parte para o Rio de Janeiro em busca de uma carreira mais sólida. Nesse contexto, associa-se à Senhor, uma publicação onde o amigo Carlos Scliar já colaborava, além de nomes conhecidos no meio carioca, como Clarice Lispector e João Guimarães Rosa, e os então novatos Paulo Francis e Jaguar. De curta duração, apenas cinco anos – de 1959 e 1964 –, a Revista fez história, por conta de sua importância para as letras nacionais e as artes gráficas; área em que Glauco Rodrigues rapidamente se destacou.
Nessa época, e para sobreviver na cidade grande, Glauco se dedicou também a fazer retratos da elite local e daquela que circulava pela animada capital do país. Eram retratos pouco comportados, que incluíam cenas inusitadas e personagens inesperados; tudo numa mesma tela. O artista participou em 1960 do IX Salão Nacional de Arte Moderna, quando obteve um prêmio que lhe facultou viajar ao exterior. Já na Europa, tomou parte da Bienal de Paris e, por conta de um convite da embaixada brasileira, morou em Roma entre os anos de 1962 e 1965, quando teve oportunidade de participar da XXXII Bienal de Veneza. Voltou- se então para o abstracionismo; gênero muito estimado naquele contexto.
Ao retornar ao Brasil, toma parte da exposição Opinião 66, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, junto com artistas como Anna Maria Maiolino, Hélio Oiticica, Ivan Serpa e Lygia Clark. Por outro lado, se ressente com o novo ambiente político do país, marcado pelo Golpe de 1964. Definitivamente, o Brasil que deixara não era mais aquele para o qual reencontrava.
Decide, então, que era chegada a hora de contar a sua história visual do Brasil. Datam dessa época, telas do artista com clara influência da arte pop, que anunciava uma estética em série e avessa ao que considerava ser o “hermetismo da arte moderna”. O uso de cores fluorescentes, brilhantes e vibrantes – feitas com tinta acrílica, poliéster e látex –, empregadas até então quase que exclusivamente na publicidade, nas capas de revistas, nos cartazes de rua e nos objetos de consumo, também caracterizava o gênero.
Glauco, que convivera com esse movimento quando no exterior, aderiu a ele traduzindo-o para o contexto brasileiro. O gênero também combinava com os sentimentos do artista na época de seu retorno ao Brasil. O diagnóstico previa uma grave crise da arte, e a maneira de apresentá- la era produzindo obras críticas à massificação da cultura popular capitalista, tão marcada pelo consumo.
O pintor passa a rever, de maneira iconoclasta, obras brasileiras clássicas, temas ligados à identidade nacional – os indígenas, a natureza tropical, o futebol, o carnaval –, bem como assuntos vinculados à história nacional.
Como morava perto da praia, Glauco começou a retratar cenas cotidianas de banhistas, acrescidas da combinação de uma série de elementos simbólicos e inusitados – garotas de biquíni ao lado de militares; atores conhecidos, usando diminutas sungas, contracenando com pessoas anônimas e vestidas de maneira mais convencional; o Pão de Açúcar ladeado por frutas tropicais; a imensa escultura do Cristo Redentor convivendo com frases pop do tipo: “o que contamina o homem não é o que entra na boca, mas o que sai da boca”.
O pop, que bebia da experiência gráfica e reprodutível, entra de frente na obra de Glauco Rodrigues, que passa a criar telas muito coloridas, lembrando as tonalidades chapadas da produção industrial. Ao mesmo tempo, o artista quebra a harmonia introduzindo figuras em situações variadas, mas que parecem soltas no espaço, uma vez que dispostas diante de grandes planos de fundo imaculadamente brancos, e que assim passam a impressão de serem infinitos.
São dessa época as obras por ele definidas como Brasilianistas e Antropofágicas. O artista gaúcho relê a antropofagia de Tarsila do Amaral e do movimento modernista paulistano para também devorar assuntos canônicos da história e das artes no Brasil. Séries como Terra Brasilis (1970), Carta de Pero Vaz de Caminha (1971), No País do Carnaval (1982), Sete Vícios Capitais (1985), fazem parte da guinada pop do artista. Atento à eficácia simbólica, Glauco finalizou muitas telas sobre o Pão de Açúcar e centenas sobre São Sebastião, com o santo sendo personificado no corpo de artistas nacionais, e sempre cobertos de flechas.
Ao lado do processo antropofágico – e que o leva a traduzir e deglutir o Brasil a partir de pinturas que carregam, ao mesmo tempo, humor e crítica social –, Glauco impregna em suas obras umaclara carnavalização da cultura brasileira. O indígena, as frutas, o futebol, as passistas de escolas de samba... todos recebem cores tropicais e muitas vezes aparecem acompanhados de frases críticas; tudo num clima e num ritmo de carnaval.
Seu processo criativo começava com a reprodução de cartões postais, de imagens retiradas de revistas ou dos jornais, e de suas próprias fotografias. Era a partir desses registros que o artista recriava ambientes, abusando do verde e amarelo e por vezes introduzindo a própria bandeira nacional. A dissonância e o deslocamento entre as figuras e as circunstâncias apresentadas, o clima de festa, a brincadeira, são elementos que deixam evidente a veia satírica do pintor que, em tempos de ditadura, se negava a compactuar com os mitos e estereótipos criados e difundidos pelos militares.
Na exposição Acontece que somos canibais, a fase pop de Glauco Rodrigues está muito bem representada. Frutas tropicais, o Cristo Redentor, o Carnaval, as mulheres de biquíni, os indígenas kaxinawá, dividem espaços com cenas retiradas da história do Brasil. Esse é o caso das releituras, na chave do tropicalismo crítico, da tela de Almeida Júnior – O Derrubador Brasileiro (1875) –, e da obra A Primeira Missa no Brasil, de Victor Meireles (1861). Muito conhecidas, utilizadas quase que como carteiras de identidade, essas duas pinturas devolvem, na chave do patriotismo, faces e expectativas de um país que se quer ver como desbravador e que gosta de se representar na base da (falsa) tolerância e de um suposto (e ilusório) pacifismo.
Já na perspectiva de Glauco Rodrigues, porém, o realismo vira sátira e burla, por meio da alusão e da correspondência. Nada é exatamente o que ali se apresenta. Nessa nova “Missa” (que não é mais a “Primeira”) desfilam em ritmo de samba, indígenas, religiosos e militares, aliás, já presentes na cena criada por Meireles. Mas no quadro de Glauco eles dividem espaço com pessoas anônimas e curiosas, crianças, casais e personalidades políticas. Aqui, sim, vemos uma verdadeira “Geléia Geral”, parodiando a música lançada por Gilberto Gil e Torquato Neto em 1968, numa espécie de homenagem ao Tropicalismo.
Já o Derrubador de Glauco Rodrigues aparece com uma postura corporal idêntica à cena original, produzida por Almeida Junior, mas ao invés de se recostar numa rocha, apoia- se num duplo mapa do Brasil, verde e azul, aliás a cor do machado que ele carrega ostensivamente em sua mão esquerda. O contorno físico do território do Brasil, associado às cores da bandeira, como que invertem a situação, e o que era elevação vira agora crítica: piada pronta.
Indígenas, uma mãe e seu filho, surgem por vezes vestidos como catequizados – a despeito de manterem alguns sinais identitários, como pinturas corporais e um colar típico –, por vezes com suas indumentárias e instrumentos tradicionais apenas traídos pela blague das cores verde e amarela, por um colar de metal ou um relógio no braço esquerdo do rapaz. Como se vê, estão todos juntos e separados; convertidos e famintos, como diz a sentença que completa a cena.
Bananas, cajus, milhos, raízes, são descritos à moda dos naturalistas oitocentistas, mas denunciados, mais uma vez, pela abundância exagerada do verde e amarelo, por sob o mesmo fundo branco.
Mulheres negras vestidas à moda ou com roupas carnavalescas – frequentemente apresentadas em verde e amarelo – levam à mão uma menina indígena, com seu colar de nação ostensivamente maior do que seu corpo diminuto.
Enfim lá estão eles, os brasileiros, híbridos como queria o “mito da democracia racial” – que nessa época era muito explorado pela Ditadura Militar –, mas, ao mesmo tempo, por demais hierarquizados. Mistura também funciona aqui na base do “todos juntos e separados”.
Até mesmo a tipologia gráfica toma um formato e importância fundamentais quando inseridos nas telas de Glauco Rodrigues. De um lado, ela lembra os escritos que acompanhavam as aquarelas dos viajantes do século XIX, que, não contentes de esboçar pitorescamente a colônia dos portugueses, não raro, incluíam textos e assim procuravam dirimir qualquer dúvida de interpretação. No caso das telas de Glauco, porém, a tipografia assume papel crítico, ao mesmo tempo que vira elemento estético. Em geral desenhadas em azul, muitas vezes em verde e amarelo ou com uma paleta própria, elas se configuram como elementos de caráter tipográfico prontamente transformados em letras cursivas,
porque feitas pela mão do artista que introduz a irregularidade intencional do gesto humano. Até nesse aspecto há, portanto, duplicidade e ambiguidade; no mesmo lugar onde se lê com presumida naturalidade, reside o lugar da inversão sagaz elaborada pelo artista.
A obra de Glauco Rodrigues ficou durante longo tempo basicamente esquecida, talvez por não corresponder ou se encaixar de maneira óbvia aos cânones modernistas da época. Entretanto, nos dias hoje, nesses tempos tão distópicos em que vivemos, quando a realidade parece exagerada e surreal (mas infelizmente não é), quando a política vira espetáculo fácil de autoritarismo, onde o verde e amarelo foram sequestrados de uma parte importante da população, a ironia sutil de Glauco talvez esteja finalmente em casa e diga respeito aos tempos do agora. Esse tempo em compasso de espera e que se apresenta na forma de um presente sem futuro.
Os kaxinawá de Glauco Rodrigues somos nós! O verde e amarelo somos nós! Tudo em sua obra é arte antropofágica, no sentido dado pelos povos ameríndios que fazem da comida um ritual de troca e deglutição, sem geografia certa ou tempo delimitado.
Tudo deve ser digerido e vomitado, numa celebração da cultura brasileira que devora aos “outros”, mas também a si própria e a “nós” mesmos. Isso porque, “acontece que somos canibais” – verdes e amarelos, e tropicais.