Uma casa branca, com um volume semicircular protuberante na fachada, coroado por uma marquise redonda apoiada numa coluna central, que atravessa todo o volume da casa e se solta no andar térreo, marcando o plano de entrada. Assim a construção demarca sua curiosa presença na cidade. Importante expoente do movimento modernista em São Paulo, essa casa-óvni, inaugurada em 1938, faz parte de um conjunto de 17 residências feitas para aluguel, projetadas e incorporadas por Flávio de Carvalho em um terreno de sua família no bairro dos Jardins, entre a Alameda Lorena e a Alameda Ministro Rocha Azevedo, que antes pertencia ao pai do poeta Oswald de Andrade. A Vila América – também conhecida como Vila Modernista – possui uma rua interna, que integra todos os imóveis do conjunto, tornando-se, idealmente, uma espécie de quintal coletivo dos moradores-inquilinos. Morador ele mesmo da casa situada na esquina do conjunto, Flávio manteve uma loja no térreo da vila, chamada “Vaca”, na qual vendia laticínios produzidos na sua fazenda em Valinhos.
Radical e provocador, Flávio de Carvalho era um feroz crítico dos costumes burgueses, e acreditava que a cidade seria a verdadeira casa do “homem de amanhã”, que ele chamava de “homem nu”. Daí o sentido de coletividade da vila, que confronta o individualismo dos lotes privados fazendo casas muito próximas e/ou geminadas. O que, nos arranjos internos das plantas acaba levando à supressão de corredores, à maior integração entre áreas sociais e de serviço, à criação de cômodos com dimensões modestas, à sugestão do uso de cortinas (ao invés de paredes) para a separação de alguns ambientes, tornando-os flexíveis, e à preparação de uma cuidadosa bula com instruções de uso correto das casas. Bula com normativas pedagógicas visando a educação do novo homem a surgir, menos afeito aos padrões de conforto burgueses e, portanto, mais apto a se tornar um ativo habitante da cidade.
As paredes masseadas e pintadas de branco, as estruturas de concreto armado, e o recurso ao uso de delicados perfis metálicos para caixilhos e guarda-corpos são alguns dos índices que remontam à ideia de casa como “máquina de habitar”, tal como proposto por Le Corbusier nos anos 1920. Na São Paulo da década de 30, as casas modernistas projetadas por Gregori Warchavchik e Flávio de Carvalho apareceram como provocativas aberrações. Isto é, como se objetos voadores não-identificados tivessem pousado em meio aos ornamentados sobrados de feição eclética que dominavam a paisagem dos bairros da elite paulistana. Incompreendido, o conjunto de Flávio acabou sendo vendido e descaracterizado, perdendo, com isso, tanto a capacidade de educar o novo homem, como pretendia o irreverente artista-arquiteto, quanto o sentido de coletividade. Ainda assim, nas décadas de 1980, 90 e 2000, essa casa (número 1052 da Alameda Ministro Rocha Azevedo) abrigou lojas de design de móveis como a Nucleon 8, e escritórios de arquitetura e design como o Studio Arthur Casas.
É louvável que, nos dias de hoje, instituições privadas, como galerias de arte, estejam empenhadas em restaurar obras residenciais que são patrimônios da nossa arquitetura moderna, devolvendo-as à fruição coletiva. No caso dessa obra, uma das poucas casas razoavelmente preservadas do conjunto, trata-se de uma construção cujo espaço central tem um generoso pé-direito duplo, com paredes de cantos arredondados, e uma alternância calculada entre peitoris opacos e planos vazados com leves barras horizontais de ferro, dando a esse vazio central um caráter fortemente cinético. Característica que será, certamente, muito bem explorada por artistas em trabalhos site-specific que venham a ser feitos aqui.
Diferentemente de Warchavchik, próximo da Bauhaus, Flávio de Carvalho tinha um espírito libertário e experimental, muito mais identificado ao dadaísmo. Na sede da Fazenda Capuava, que projetou e construiu para si mesmo em Valinhos, o arquiteto-artista combina um léxico moderno com referências a culturas ancestrais, como a egípcia, articulando o progressismo das vanguardas a uma heterodoxa pulsão erótica de vida. Aqui, no bairro dos Jardins, ele tentou se adequar às regras do mercado, de maneira a poder subvertê-lo. Mas o mercado resistiu. Oitenta anos depois, com o seu espaço aberto a experimentações artísticas, uma dessas casas ganha uma inesperada sobrevida. Que venham outras!
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Guilherme Wisnik