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"On sale", a promocionalidade nada discreta do capitalismo artístico
Clotilde PerezA partir do século XVII, a arte passou por importante transição nas relações de produção e consumo, de um modelo baseado no mecenato e nas encomendas, muitas vezes submetido aos caprichos e veleidades dos demandantes, à comercialização por meio de sistemas mais livres, antecipando a procura, com destaque para o surgimento do marchand, profissional responsável pela promoção artística e, posteriormente, das galerias, estabelecendo definitivamente o que compreendemos como mercado de arte. Com o tempo, o mercado da arte foi se consolidando e construindo conexões sígnicas com outro mercado em movimento que saía das lógicas coletivas em direção à individualização e à vida privada, o mercado de produtos e serviços de luxo.
O produto de consumo se torna objeto de luxo quando é capaz de constituir-se enquanto singularidade, qualidade que lhe permite ser exposto e admirado pelo esplendor da beleza, pela raridade dos elementos que o constituem, pela criatividade reconhecida de seu criador e, mais recentemente, pela marca que o nomeia. Nessa trajetória, arte e luxo partilham significados que se fundamentam na exclusividade, na capacidade de estimular a sensibilidade das pessoas, tornando-se referência de gosto e de refinamento. Já a partir do século XIX, o próprio luxo se torna tema nas artes, uma vez que os artistas, observadores atentos, estão interessados em captar toda a efervescência da época, e o luxo é um de seus aspectos mais exuberantes. E a arte fornece ao luxo a dose necessária de legitimidade. Assim, a consolidação da sociedade contemporânea se dá pelo consumo, caracterizado pelo descolamento da função utilitária dos objetos em direção aos valores simbólicos, campo fértil dos objetos e experiências de luxo, tornando o consumo responsável pela construção de estilos de vida, valores e condutas.
Nesse sentido, a imersão sensível no “supermercado elegante” que Cipis nos oferece com sua arte exuberante, bem-humorada e provocadora instala movimentos, sensibilidades e reflexões que podem sugerir contradições inconciliáveis, mas não são; na contramão, revelam a inteligência sensível de um artista visual que extrai das cores, das formas e dos espaços um jeito particular de ser, em que criar e viver se indistinguem. Uma vez mais, arte e luxo nos instigam e o consumo se estabelece como possibilidade de acesso às benesses mágicas do ter e ser por ter.
Somos seres desejantes porque somos falíveis. Esta condição faltante nos impulsiona em direção à completude possível expressa em buscas que, muitas vezes, contestam a razoabilidade. Diferentemente do objeto de consumo trivial, a arte tem a capacidade de encapsular a genialidade do artista na materialidade da obra – desejo máximo do objeto de luxo. Com isso, a obra de arte é sujeito e objeto, o que explica sua capacidade de atrair o possuidor-colecionador, que se rende deslumbrado com a possibilidade de completude por meio da exclusividade, do caráter único da obra de arte, da sua existência aurática, faísca divinal, uma certa vitória diante da nossa finitude.
Cipis na Black Friday chega para tensionar a tradição da contemplação da arte, com a fixação, a demora e o aprofundamento instalados. Ao apresentar a possibilidade do encontro da singularidade da obra a partir da imersão na multiplicidade das obras plurais, induz o vaguear de olhares, mentes e corpos como único ato possível diante da imensidão. A espacialidade atua por caminhos distintos que se misturam a temporalidades que se dobram. Na experiência da distância, a obra totalizante se mostra cenografia consumida, um presente-passado. Na vivência da proximidade, a obra revela sua excepcionalidade consumível, presente-futuro.
Quatrocentas e quarenta pinturas constroem a cena de um templo magistral de consumo, corredores e prateleiras que se desvelam em sequências e interrupções, em padrões e particularidades, uma experiência imersiva na multiplicidade que parece homogeneizar, mas que, na realidade, surpreende ao conter a diferença discreta. Enquanto a cultura material de consumo se expande na oferta numerosa nos pegue-pague do mundo, viável pela reprodutibilidade industrial e pelo avanço tecnológico, o supermercado de Marcelo Cipis promove a serialidade decorrente de inúmeros atos únicos, um amálgama do sagrado, próprio da arte clássica, e do profano, condição inerente ao consumo.
E a ritualização do consumo começa na rua, na própria arquitetura do ambiente expositivo, uma vitrine que atrai o olhar de quem passa e nos convida a entrar. Dentro, prateleiras exuberantes expõem produtos que são múltiplos e únicos a um só tempo. Cores e formas que se repetem e nos oferecem a originalidade no detalhe. A possibilidade da compra imediata da obra única aplaca a ansiedade dos consumidores vorazes e transfere a propriedade, dando espaço aos rituais de posse, já iniciados na encenação do embrulho, ao mesmo tempo em que esfacela e desconstrói a obra múltipla, tornando a cena viva, mutante e instável. A compra é o ato soberano do indivíduo e, com isso, simultaneamente, a desconstrução da totalidade unificada que nos foi oferecida no momento inaugural. Individualidade e coletividade se constituem em novas camadas reflexivas.
No consumo, a ritualização da posse desencadeia o descarte decorrente do desgaste e do uso, um fim predestinado. A posse de um Cipis na Black Friday, marcação promocional importada, garante a transmissão e, com isso, a eternidade, como uma consequência santificada diante da aura que desdenha do capital. E mais: a sensação de vantagem é duradoura, alimento potente da impulsividade no consumo.
É notório que a indiferenciação dos produtos de consumo busca singularidade por meio da publicidade, linguagem privilegiada do nosso tempo, em que o seriado se torna único pelo simulacro promocional – “o melhor do mundo...”, “feito para você...”, “o último grito da inovação...”. Já o incomum da obra de arte, possível pelo ato criativo do artista, se dá ao consumo na imediaticidade do ato da compra: vendido! Com isso, notamos o quanto Cipis se movimenta, ora contestando e jogando com a repetição e a reprodutibilidade, ora tirando proveito delas. Esta marca de desdém-proveito já estava presente na obra “Cipis Transworld”, instalação performática do artista durante a 21ª. Bienal de Arte, em 1991. O que une consumo material e Cipis na Black Friday é a linguagem promocional que faz uso dos signos qualitativos da arte que nos surpreende pelos sentidos para vender. Entre simulacros de barganhas, pechinchas e negociações imaginárias, Cipis na Black Friday é a expressão emblemática da riqueza da arte, do refinamento do artista e do desejo de todos nós por um naco do bem divinal, a obra.
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ArtworksMarcelo Cipis
Mulher de costas - A1, 2025Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas]
40 x 30 cm [16 x 12 in.] -
ArtworksMarcelo Cipis
Mulher de costas - A2, 2025Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas]
40 x 30 cm [16 x 12 in.] -
ArtworksMarcelo Cipis
Mulher de costas - A3, 2025Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas]
40 x 30 cm [16 x 12 in.] -
ArtworksMarcelo Cipis
Mulher de costas - A4, 2025Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas]
40 x 30 cm [16 x 12 in.] -
ArtworksMarcelo Cipis
Mulher de costas - A5, 2025Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas]
40 x 30 cm [16 x 12 in.] -
ArtworksMarcelo Cipis
Mulher de costas - A6, 2025Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas]
40 x 30 cm [16 x 12 in.] -
ArtworksMarcelo Cipis
Mulher de costas - A7, 2025Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas]
40 x 30 cm [16 x 12 in.] -
ArtworksMarcelo Cipis
Mulher de costas - A8, 2025Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas]
40 x 30 cm [16 x 12 in.] -
ArtworksMarcelo Cipis
Mulher de costas - A9, 2025Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas]
40 x 30 cm [16 x 12 in.] -
ArtworksMarcelo Cipis
Mulher de costas - A10, 2025Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas]
40 x 30 cm [16 x 12 in.] -
ArtworksMarcelo Cipis
Mulher de costas - A11, 2025Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas]
40 x 30 cm [16 x 12 in.] -
ArtworksMarcelo Cipis
Mulher de costas - A12, 2025Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas]
40 x 30 cm [16 x 12 in.] -
ArtworksMarcelo Cipis
Mulher de costas - A13, 2025Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas]
40 x 30 cm [16 x 12 in.]
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Marcelo Cipis, Sentidos - B1, 2025
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Marcelo Cipis, Homem caindo - C1, 2025
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Vertigens e surrealismos em Cipis
Em obras como Homem caindo e 4 pernas, Marcelo Cipis retoma uma de suas investigações mais recorrentes: a figura do corpo reduzida a um vulto, suspenso entre o humor e o absurdo. As silhuetas, isoladas sobre fundos chapados, fundem leveza e estranheza em composições que beiram o surrealismo. Essa tensão entre o reconhecível e o onírico aproxima as imagens de uma iconografia que nos remonta aos cartazes dos filmes noir, como o pôster criado por Saul Bass para Um corpo que cai (1958), de Alfred Hitchcock, em que a figura em queda se torna ícone gráfico e metáfora de vertigem. Em Cipis, o mesmo impulso de síntese e deslocamento se manifesta, revelando uma poética que, entre o riso e o enigma, transforma o corpo em signo e narrativa em suspensão.
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Marcelo Cipis, 4 pernas - I1, 2025
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Marcelo Cipis, Ameba - D1, 2025
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Marcelo Cipis, Bule - E1, 2025
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Objetos
Marcelo Cipis elege objetos banais — como fósforos, bules ou dados — como protagonistas de suas pinturas, revelando a influência da arte pop e seu interesse pela força simbólica do cotidiano. Esses objetos formam um de seus temas mais recorrentes — ou, como o próprio artista define, seus “assuntos” — nos quais aposta na familiaridade que o espectador possa ter com a imagem escolhida. Ao isolar essas figuras sobre fundos vazios e chapados, Cipis interrompe o fluxo visual da cultura de consumo, suspendendo o sentido original das imagens e destacando-as de seus contextos. Embora provenientes de um universo de reprodutibilidade em massa, esses objetos recuperam, em sua singularidade pictórica, uma espécie de aura — um poder de presença que resiste à lógica serial e reafirma a pintura como espaço de renovação do olhar.
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Marcelo Cipis, A utopia é aqui - F1, 2025
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A utopia é aqui
Em A utopia é aqui, Marcelo Cipis recorre mais uma vez ao humor gráfico e à simplicidade formal de um motivo que já trabalhara de maneira recorrente em sua carreira. A figura — suspensa entre um perfil humano e uma forma derretida, com um nariz que evoca, sem declarar, a fábula de Pinóquio — encarna um estado de instabilidade e dúvida. No centro da imagem, a inscrição "A utopia é aqui" opera como afirmação e ironia. Ao declarar a presença da utopia no agora, Cipis desmonta a noção tradicional de utopia como projeto inalcançável e futuro, propondo-a como construção presente, coletiva e necessariamente imperfeita. A figura, em seu aspecto melancólico e quase cômico, denuncia o colapso desse ideal diante da realidade. Como em outras obras do artista, o traço simples abriga comentário crítico sobre o mundo contemporâneo, seus impasses e promessas não cumpridas – tudo isso costurado por um senso de humor costumeiro do artista.
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Marcelo Cipis, Formas - G1, 2025
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Marcelo Cipis, Telhado - H1, 2025
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Marcelo Cipis, Dado - J1, 2025
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Marcelo Cipis, Rosa dos ventos - K1, 2025
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Marcelo Cipis, Tambor - L1, 2025
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Tambores
A obra de Marcelo Cipis é marcada por uma nítida expressividade visual, que tece narrativas a partir de técnicas, materiais e outras escolhas estéticas que dão vida aos seus trabalhos. Com pinceladas lisas, de extrema precisão e contornos bem delineados, seus "tambores” fazem parte do processo incessante de criatividade do artista, surgindo de forma casual quando ele desenhou duas formas que se interligavam - a elipse e o trapézio – dando o nome de Tambor para relacionar ao ritmo pulsante das batidas do coração.
Photo by Paulo Whitaker. Marcelo Cipis archives. -
Marcelo Cipis, Fumando - M1, 2025
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Marcelo Cipis, Passado/Futuro - N1, 2025
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Homem Suprematista
Os “homens suprematistas”, de Marcelo Cipis revisitam a linguagem geométrica da vanguarda russa a partir de uma figura reduzida à sua síntese essencial: a cabeça humana transformada em plano e cor. Repetida com pequenas variações cromáticas, essa silhueta parece flutuar sobre o fundo verde uniforme, evocando tanto a serialidade da produção industrial quanto a meditação formal do suprematismo. O artista reinterpreta alguns dos princípios recorrentes em Malevich - a pureza do círculo, do quadrado e da linha — integrando-os ao seu vocabulário gráfico e à sua ironia característica. O resultado é uma imagem paradoxal: ao mesmo tempo impessoal e subjetiva, racional e sensível, que afirma a persistência da forma como campo de invenção.
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Marcelo Cipis, Homem suprematista - O1, 2025
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Marcelo Cipis, Fluffysm - P1, 2025
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Marcelo Cipis, Rosto cipis - Q1, 2025
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Rosto Cipis
Tratando-se de Cipis, é preciso sempre atenção aos jogos de sentido. O artista sintetiza sua própria assinatura em forma de imagem. As letras que compõem seu sobrenome surgem dispersas, compondo um autorretrato reduzido à sua dimensão gráfica. O artista transforma o nome – marca pessoal e comercial – em objeto visual e logotipo, ecoando sua relação com o design e a publicidade. Embora essa operação dialogue com práticas já vistas no campo da arte – como a serialidade produtiva da Factory de Andy Warhol ou o ideal construtivista russo de integração entre a arte e a produção industrial e aos meios de comunicação -, Cipis a reinscreve em chave irônica. Sua marca não busca a inserção produtiva, mas a paródia da lógica de produção e consumo, convertendo o próprio nome em signo, produto e comentário crítico sobre a visibilidade e a circulação da arte contemporânea.
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Marcelo Cipis, Escola - R1, 2025
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Escola
Em Escola, Marcelo Cipis comenta com ironia a presença inevitável das telas e dos dispositivos eletrônicos na contemporaneidade. A forma central, que lembra um joystick, torna-se metáfora de um aprendizado mediado pela tecnologia — não como substituição dos métodos tradicionais, mas como parte inseparável do cotidiano. Ao associar o jogo ao ensino, o artista tensiona o lugar da experiência, da atenção e da imaginação no processo educativo, evocando de modo livre o pensamento de Paulo Freire, em que pesam a relação horizontal entre educador e educando, a valorização do contexto do aluno e a educação como prática política. Cipis transforma um ícone da cultura digital em reflexão sobre os modos de ensinar e aprender em um mundo atravessado pela imagem e pela mediação tecnológica.
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Marcelo Cipis, Mulher transfer - S1, 2025
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Transfers
As obras de Marcelo Cipis apresentadas utilizam a técnica de transferência de imagem a partir de catálogos da loja Sears, Roebuck and Company de meados da década de 1910, explorando figuras femininas e masculinas originalmente usadas para exibir roupas. Ao apropriar-se desses retratos publicitários, Cipis desloca seu contexto original e os sobrepõe de forma rítmica e fragmentada sobre fundos coloridos e formas geométricas abstratas. As composições evocam visualmente cartas de baralho, com rostos duplicados e justapostos em eixos diagonais, acompanhados por elementos gráficos que segundo o artista, “remetem vagamente a naipes”. O artista transforma materiais do consumo de massa em imagens híbridas e enigmáticas, em um arranjo visual de referências conceituais explícitas de sua trajetória.
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Marcelo Cipis, Homem transfer - T1, 2025
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Marcelo Cipis, Pobre diabo - U1, 2025
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Marcelo Cipis, Mão - V1, 2025
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Marcelo Cipis, Segurando uma abstração - X1, 2025
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Segurando uma abstração
Em Segurando uma abstração, Marcelo Cipis ironiza a própria experiência de fruição artística ao representar uma mão que segura, literalmente, uma figura amorfa. A pintura traduz o humor característico do artista, que transforma em imagem direta e cotidiana aquilo que costuma ser visto como conceito ou ideia. Integrante ao conjunto de Cipis na Black Friday, a obra evidencia, com leveza e ironia, a contradição entre a aura do objeto artístico e a lógica promocional que o cerca.
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Marcelo Cipis, Fósforo - Z1, 2025%3Cspan%20class%3D%26%2334%3Bartist%26%2334%3B%3E%3Cstrong%3EMarcelo%20Cipis%3C/strong%3E%3C/span%3E%2C%20%3Cspan%20class%3D%26%2334%3Btitle%26%2334%3B%3E%3Cem%3EF%26%23243%3Bsforo%20-%20Z1%3C/em%3E%2C%202025%3C/span%3E
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"On sale", a promocionalidade nada discreta do capitalismo artístico
Clotilde PerezA partir do século XVII, a arte passou por importante transição nas relações de produção e consumo, de um modelo baseado no mecenato e nas encomendas, muitas vezes submetido aos caprichos e veleidades dos demandantes, à comercialização por meio de sistemas mais livres, antecipando a procura, com destaque para o surgimento do marchand, profissional responsável pela promoção artística e, posteriormente, das galerias, estabelecendo definitivamente o que compreendemos como mercado de arte. Com o tempo, o mercado da arte foi se consolidando e construindo conexões sígnicas com outro mercado em movimento que saía das lógicas coletivas em direção à individualização e à vida privada, o mercado de produtos e serviços de luxo.
O produto de consumo se torna objeto de luxo quando é capaz de constituir-se enquanto singularidade, qualidade que lhe permite ser exposto e admirado pelo esplendor da beleza, pela raridade dos elementos que o constituem, pela criatividade reconhecida de seu criador e, mais recentemente, pela marca que o nomeia. Nessa trajetória, arte e luxo partilham significados que se fundamentam na exclusividade, na capacidade de estimular a sensibilidade das pessoas, tornando-se referência de gosto e de refinamento. Já a partir do século XIX, o próprio luxo se torna tema nas artes, uma vez que os artistas, observadores atentos, estão interessados em captar toda a efervescência da época, e o luxo é um de seus aspectos mais exuberantes. E a arte fornece ao luxo a dose necessária de legitimidade. Assim, a consolidação da sociedade contemporânea se dá pelo consumo, caracterizado pelo descolamento da função utilitária dos objetos em direção aos valores simbólicos, campo fértil dos objetos e experiências de luxo, tornando o consumo responsável pela construção de estilos de vida, valores e condutas.
Nesse sentido, a imersão sensível no “supermercado elegante” que Cipis nos oferece com sua arte exuberante, bem-humorada e provocadora instala movimentos, sensibilidades e reflexões que podem sugerir contradições inconciliáveis, mas não são; na contramão, revelam a inteligência sensível de um artista visual que extrai das cores, das formas e dos espaços um jeito particular de ser, em que criar e viver se indistinguem. Uma vez mais, arte e luxo nos instigam e o consumo se estabelece como possibilidade de acesso às benesses mágicas do ter e ser por ter.
Somos seres desejantes porque somos falíveis. Esta condição faltante nos impulsiona em direção à completude possível expressa em buscas que, muitas vezes, contestam a razoabilidade. Diferentemente do objeto de consumo trivial, a arte tem a capacidade de encapsular a genialidade do artista na materialidade da obra – desejo máximo do objeto de luxo. Com isso, a obra de arte é sujeito e objeto, o que explica sua capacidade de atrair o possuidor-colecionador, que se rende deslumbrado com a possibilidade de completude por meio da exclusividade, do caráter único da obra de arte, da sua existência aurática, faísca divinal, uma certa vitória diante da nossa finitude.
Cipis na Black Friday chega para tensionar a tradição da contemplação da arte, com a fixação, a demora e o aprofundamento instalados. Ao apresentar a possibilidade do encontro da singularidade da obra a partir da imersão na multiplicidade das obras plurais, induz o vaguear de olhares, mentes e corpos como único ato possível diante da imensidão. A espacialidade atua por caminhos distintos que se misturam a temporalidades que se dobram. Na experiência da distância, a obra totalizante se mostra cenografia consumida, um presente-passado. Na vivência da proximidade, a obra revela sua excepcionalidade consumível, presente-futuro.
Quatrocentas e quarenta pinturas constroem a cena de um templo magistral de consumo, corredores e prateleiras que se desvelam em sequências e interrupções, em padrões e particularidades, uma experiência imersiva na multiplicidade que parece homogeneizar, mas que, na realidade, surpreende ao conter a diferença discreta. Enquanto a cultura material de consumo se expande na oferta numerosa nos pegue-pague do mundo, viável pela reprodutibilidade industrial e pelo avanço tecnológico, o supermercado de Marcelo Cipis promove a serialidade decorrente de inúmeros atos únicos, um amálgama do sagrado, próprio da arte clássica, e do profano, condição inerente ao consumo.
E a ritualização do consumo começa na rua, na própria arquitetura do ambiente expositivo, uma vitrine que atrai o olhar de quem passa e nos convida a entrar. Dentro, prateleiras exuberantes expõem produtos que são múltiplos e únicos a um só tempo. Cores e formas que se repetem e nos oferecem a originalidade no detalhe. A possibilidade da compra imediata da obra única aplaca a ansiedade dos consumidores vorazes e transfere a propriedade, dando espaço aos rituais de posse, já iniciados na encenação do embrulho, ao mesmo tempo em que esfacela e desconstrói a obra múltipla, tornando a cena viva, mutante e instável. A compra é o ato soberano do indivíduo e, com isso, simultaneamente, a desconstrução da totalidade unificada que nos foi oferecida no momento inaugural. Individualidade e coletividade se constituem em novas camadas reflexivas.
No consumo, a ritualização da posse desencadeia o descarte decorrente do desgaste e do uso, um fim predestinado. A posse de um Cipis na Black Friday, marcação promocional importada, garante a transmissão e, com isso, a eternidade, como uma consequência santificada diante da aura que desdenha do capital. E mais: a sensação de vantagem é duradoura, alimento potente da impulsividade no consumo.
É notório que a indiferenciação dos produtos de consumo busca singularidade por meio da publicidade, linguagem privilegiada do nosso tempo, em que o seriado se torna único pelo simulacro promocional – “o melhor do mundo...”, “feito para você...”, “o último grito da inovação...”. Já o incomum da obra de arte, possível pelo ato criativo do artista, se dá ao consumo na imediaticidade do ato da compra: vendido! Com isso, notamos o quanto Cipis se movimenta, ora contestando e jogando com a repetição e a reprodutibilidade, ora tirando proveito delas. Esta marca de desdém-proveito já estava presente na obra “Cipis Transworld”, instalação performática do artista durante a 21ª. Bienal de Arte, em 1991. O que une consumo material e Cipis na Black Friday é a linguagem promocional que faz uso dos signos qualitativos da arte que nos surpreende pelos sentidos para vender. Entre simulacros de barganhas, pechinchas e negociações imaginárias, Cipis na Black Friday é a expressão emblemática da riqueza da arte, do refinamento do artista e do desejo de todos nós por um naco do bem divinal, a obra.
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Marcelo Cipis
Mulher de costas - A1, 2025Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas]
40 x 30 cm [16 x 12 in.] -
Marcelo Cipis
Mulher de costas - A2, 2025Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas]
40 x 30 cm [16 x 12 in.] -
Marcelo Cipis
Mulher de costas - A3, 2025Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas]
40 x 30 cm [16 x 12 in.] -
Marcelo Cipis
Mulher de costas - A4, 2025Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas]
40 x 30 cm [16 x 12 in.] -
Marcelo Cipis
Mulher de costas - A5, 2025Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas]
40 x 30 cm [16 x 12 in.] -
Marcelo Cipis
Mulher de costas - A6, 2025Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas]
40 x 30 cm [16 x 12 in.] -
Marcelo Cipis
Mulher de costas - A7, 2025Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas]
40 x 30 cm [16 x 12 in.] -
Marcelo Cipis
Mulher de costas - A8, 2025Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas]
40 x 30 cm [16 x 12 in.] -
Marcelo Cipis
Mulher de costas - A9, 2025Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas]
40 x 30 cm [16 x 12 in.] -
Marcelo Cipis
Mulher de costas - A10, 2025Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas]
40 x 30 cm [16 x 12 in.] -
Marcelo Cipis
Mulher de costas - A11, 2025Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas]
40 x 30 cm [16 x 12 in.] -
Marcelo Cipis
Mulher de costas - A12, 2025Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas]
40 x 30 cm [16 x 12 in.] -
Marcelo Cipis
Mulher de costas - A13, 2025Acrílica sobre tela [Acrylic on canvas]
40 x 30 cm [16 x 12 in.]
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Vertigens e surrealismos em Cipis
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Objetos
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A utopia é aqui
Em A utopia é aqui, Marcelo Cipis recorre mais uma vez ao humor gráfico e à simplicidade formal de um motivo que já trabalhara de maneira recorrente em sua carreira. A figura — suspensa entre um perfil humano e uma forma derretida, com um nariz que evoca, sem declarar, a fábula de Pinóquio — encarna um estado de instabilidade e dúvida. No centro da imagem, a inscrição "A utopia é aqui" opera como afirmação e ironia. Ao declarar a presença da utopia no agora, Cipis desmonta a noção tradicional de utopia como projeto inalcançável e futuro, propondo-a como construção presente, coletiva e necessariamente imperfeita. A figura, em seu aspecto melancólico e quase cômico, denuncia o colapso desse ideal diante da realidade. Como em outras obras do artista, o traço simples abriga comentário crítico sobre o mundo contemporâneo, seus impasses e promessas não cumpridas – tudo isso costurado por um senso de humor costumeiro do artista.
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Tambores
A obra de Marcelo Cipis é marcada por uma nítida expressividade visual, que tece narrativas a partir de técnicas, materiais e outras escolhas estéticas que dão vida aos seus trabalhos. Com pinceladas lisas, de extrema precisão e contornos bem delineados, seus "tambores” fazem parte do processo incessante de criatividade do artista, surgindo de forma casual quando ele desenhou duas formas que se interligavam - a elipse e o trapézio – dando o nome de Tambor para relacionar ao ritmo pulsante das batidas do coração.
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Homem Suprematista
Os “homens suprematistas”, de Marcelo Cipis revisitam a linguagem geométrica da vanguarda russa a partir de uma figura reduzida à sua síntese essencial: a cabeça humana transformada em plano e cor. Repetida com pequenas variações cromáticas, essa silhueta parece flutuar sobre o fundo verde uniforme, evocando tanto a serialidade da produção industrial quanto a meditação formal do suprematismo. O artista reinterpreta alguns dos princípios recorrentes em Malevich - a pureza do círculo, do quadrado e da linha — integrando-os ao seu vocabulário gráfico e à sua ironia característica. O resultado é uma imagem paradoxal: ao mesmo tempo impessoal e subjetiva, racional e sensível, que afirma a persistência da forma como campo de invenção.
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Escola
Em Escola, Marcelo Cipis comenta com ironia a presença inevitável das telas e dos dispositivos eletrônicos na contemporaneidade. A forma central, que lembra um joystick, torna-se metáfora de um aprendizado mediado pela tecnologia — não como substituição dos métodos tradicionais, mas como parte inseparável do cotidiano. Ao associar o jogo ao ensino, o artista tensiona o lugar da experiência, da atenção e da imaginação no processo educativo, evocando de modo livre o pensamento de Paulo Freire, em que pesam a relação horizontal entre educador e educando, a valorização do contexto do aluno e a educação como prática política. Cipis transforma um ícone da cultura digital em reflexão sobre os modos de ensinar e aprender em um mundo atravessado pela imagem e pela mediação tecnológica.
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Segurando uma abstração
Em Segurando uma abstração, Marcelo Cipis ironiza a própria experiência de fruição artística ao representar uma mão que segura, literalmente, uma figura amorfa. A pintura traduz o humor característico do artista, que transforma em imagem direta e cotidiana aquilo que costuma ser visto como conceito ou ideia. Integrante ao conjunto de Cipis na Black Friday, a obra evidencia, com leveza e ironia, a contradição entre a aura do objeto artístico e a lógica promocional que o cerca.
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