Hélio Oiticica: Mundo–Labirinto

Março 18 - Julho 22, 2023

Hélio Oiticica: Mundo–Labirinto

Fred Coelho

O artista carioca Hélio Oiticica (1937-1980) surge no campo da arte quando as bases tradicionais da pintura ocidental atravessavam o pico do seu impasse moderno. A abstração geométrica das formas, a transgressão monocromática ou a inserção de materiais ordinários na composição de uma tela foram alguns dos sintomas que culminaram na “crise do plano” durante as décadas de 1950 e 1960. Tal qual sua amiga e interlocutora Lygia Clark, Oiticica inicia seu percurso e amadurece sua arte propondo superar a superfície bidimensional. Seu desafio pessoal era dar corpo à cor.

 

Em uma trajetória intensa de pouco mais de uma década, Hélio Oiticica elabora uma espécie de fluxo narrativo ininterrupto para definir as transformações que ocorrem em seu trabalho. Cada novo passo plástico era acompanhado de elaborados escritos teóricos. Nesses escritos, se revela nas entrelinhas uma história particular da cor, pensada e executada minuciosamente pelo artista. História, aqui, não no sentido do conhecimento histórico (factual e memorialista), e sim no sentido de uma narrativa (ou Programa, como o artista chamava) com encadeamentos, desdobramentos, causas e efeitos.

Há, em todos esses textos (principalmente da década de 1960), um duplo movimento entre cor e narrativa. Em uma produção cujo ato de escrever é fulcral, Oiticica faz da cor uma personagem que acompanha o autor ao longo de sua obra e sua vida. A cada etapa em que o tema ganha novas camadas, o artista batiza seus trabalhos com nomes que proclamam existências singulares: metaesquemas, relevos, penetráveis, bólides e parangolés. Elas são integrantes de uma mesma família delirante da cor, criações plásticas que surgem em metamorfoses, uma a partir da outra.

Nessa história particular da cor, o que fica mais evidente para o espectador é a passagem do metafísico para o físico – isto é, do plano intelectual e abstrato para o plano corporal e ordinário. De seu início (muito jovem, com menos de 18 anos) até o final (também muito jovem, com 42 anos), acompanhamos o movimento constante (com idas e vindas, recusas e reencontros) de um artista que, mesmo mergulhando radicalmente na “desmaterialização do objeto da arte” durante a década de 1970, sempre se disse pintor.

 

Em seus primeiros anos de trabalho, aqueles das obras ligadas ao grupo Frente e ao período batizado de Neoconcreto, a cor era pensada em duas dimensões: tempo e estrutura. Como dar corpo e movimento à cor? Como fazer dela algo que se integre ao ambiente expositivo? Guiado por pensadores-pintores como Malevich, Mondrian ou Paul Klee, sua intenção estética era despir a cor de racionalidade estática, deixá-la pulsando em sua pura plasticidade espaço-temporal. A cor, então, é ação que (des)organiza o plano bidimensional e propõe outras experiências.

No passo seguinte, a fixação de uma paleta quente de amarelos, laranjas e vermelhos (com tintas criadas pelo próprio artista) está associada a uma pesquisa monocromática das cores em sua relação com o espaço expositivo e o espectador. Na passagem do plano bidimensional de guaches, metaesquemas e monocromáticos para o espaço tridimensional dos bilaterais, relevos, núcleos e penetráveis, Oiticica situa o problema do espectador enquanto participador da obra. Ao nos deslocar do olhar contemplativo e mecânico da figuração tradicional para mergulharmos no pensamento dinâmico da cor, o artista busca ativar uma outra fruição, cuja duração é um dos elementos centrais da experiência.

 

Assim, a ação de (des)materializar um plano monocromático em relevos tridimensionais e suspendê-los no espaço expositivo dá a Oiticica liberdade para pensar a cor e a pintura para além dos nossos olhos. Seus relevos e núcleos, estruturas tridimensionais, ainda para a contemplação, ganham o desdobramento batizado de Penetráveis. Agora, cabines monocromáticas permitem adentrarmos o espaço-tempo da cor com nossos próprios corpos, imersos nessa arquitetura de luz.

Ainda assim, o corpo vê a cor. Na busca por ativar outros sentidos nessa relação cromática com o mundo, Oiticica segue sua trajetória ao conceber seus bólides – objetos que dão forma ao pigmento, estruturas criadas pelo artista para, simultaneamente, encapsular e expandir o corpo da cor. Em alguns desses trabalhos, novos materiais começam a aparecer nesse exercício. O amarelo sai da madeira e transborda para a superfície móvel da malha de nylon, anunciando a ideia de uma cor para além da tinta e da visão. Agora, é possível encostar no tecido e sentir sua textura cromática.

Essa passagem – da cor no material para o material da cor – ocorre junto com o que Oiticica chamou de “descoberta do corpo”, isto é, seu período mergulhado na comunidade da Mangueira e em sua escola de samba. O corpo em movimento do passista e o contato com uma nova dimensão racial, social, sensorial e sexual de sua vida fez com que a trajetória da cor no espaço ganhasse seu capítulo definitivo na criação dos Parangolés. A seleção rigorosa de uma paleta cede espaço para texturas de diferentes materiais – tendas, estandartes e capas feitas de tecidos diversos – que ampliam radicalmente o vocabulário do artista em relação à sua obra. Seu programa ambiental, isto é, o diálogo de um trabalho plástico com o espaço, o espectador e sua participação (ou não) na proposição em jogo, arremessa as experiências do artista dos museus fechados em direção ao mundo, das galerias para o espaço público das ruas.

 

Após essa intensa escalada da cor que Oiticica atravessou na década de 1960, uma bolsa da Fundação Guggenheim, obtida em 1970, faz com que o artista viva por sete anos ininterruptos em Manhattan, Nova Iorque. Já distante da produção frequente de objetos e mais envolvido com novas mídias como o cinema, a escrita conceitual ou a fotografia, as questões surgidas na década anterior se transformam em direção a novos limites. Seus parangolés nova-iorquinos se tornam menos maleáveis, mais distantes do mito e do samba e mais mundanos e urbanos. Na investigação da cor, porém, as Cosmococas, instalações de quasi-cinema criadas simbioticamente com Neville D’Almeida em 1973, ganham destaque incontornável. Os dois artistas transformam a cocaína em pigmento, associando o pó à luminosidade pura das experiências monocromáticas do branco-sobre-branco de Malevich.

 

Nesta exposição realizada pela galeria Gomide & Co e o Projeto HO, temos o privilégio de ver montada, pela primeira vez, uma versão doméstica da CC4 - Nocagions. Nas suas instruções para a mesma, escritas em 24 de agosto de 1973, vemos que tal montagem ainda parte da famosa obra de John Cage – Notations – para expandi-la em direção aos mestres da invenção, os irmãos Haroldo e Augusto de Campos. Nesta versão doméstica, a dupla criadora em Manhattan convoca a dupla criadora em São Paulo para uma ação pensada especificamente para a cidade brasileira. Cinquenta anos depois, esse encontro finalmente ocorre. A versão atual contém ainda uma nova camada sonora: a leitura de Caetano Veloso para o poema “dias dias dias” de Augusto. Escrito em 1953, gravado em 1979, testemunhamos um trabalho de múltiplas temporalidades em ebulição. Com o canto-fala de Veloso a ressoar pela obra de Neville e Oiticica, o quase-cinema das Cosmococas, o poliedro verbo-voco-visual dos concretos, e os laços criados ainda nos anos de 1960 ao redor da Tropicália se adensam e se atualizam.

 

O que vemos, portanto, na exposição Hélio Oiticica: Mundo–Labirinto, são algumas das entradas e passagens para o processo criativo de um artista em permanente movimento de transgressão. No encontro com Neville D’Almeida, mundo e labirinto se expandem um sobre o outro e dão continuidade infinita à revolução da cor, do tempo, do espaço e da imagem. Tintas, placas de madeira, pigmentos, tecidos e cocaína formam essa espiral que, ao mesmo tempo que nos apresenta uma história dessa arte, também nos oferece novas formas de contá-la.

Da cor viemos e à cor voltaremos.