Habuba Farah

Novembro 28, 2023 - Fevereiro 9, 2024

cor em linha reta

por Heloisa Espada

 

Quantas cores compõem um cinza neutro?

 

Habuba Farah (Getulina, SP, 1931) cria diferentes respostas para esta pergunta há cerca de setenta anos. A artista investiga incansavelmente as variações cromáticas do chamado “cinza neutro”, ou cinza colorido, obtido a partir da mistura de uma cor primária (amarelo, azul ou vermelho) com sua respectiva complementar (violeta, laranja e verde). Como um prisma que refrata a luz em comprimentos de onda de cores variadas, as pinturas de Farah revelam a infinidade de matizes potencialmente contidos nestes cinzas altamente vibrantes, ao acrescentar, pouco a pouco, pequenas quantidades da cor primária ou da secundária à mistura original. Interessada em explorar transformações cromáticas de extrema delicadeza, a artista também adiciona ínfimas porções de branco às cores “retiradas” dos cinzas neutros.

 

As telas de Farah organizam uma miríade de tons em estruturas geométricas que muitas vezes se assemelham a feixes de luz. Um óleo sobre tela de 1963 exemplifica bem a operação de cruzar e sobrepor matizes a partir de um par de cores. Na obra Sem título, 1963, a artista organiza um degradê que vai do amarelo embranquecido ao marrom-escuro em feixes verticais. Estes são interceptados por séries de losangos nos tons que se encontram na escala de cor oposta, ou seja, losangos escuros cruzam os tons claros e vice-versa. Não é à toa que a artista se refere às suas pinturas como sinfonias. Nesta e em outras obras, ela embala nosso olhar em cadências de tons dos mais sutis para interromper esse fluxo de consciência com formas cortantes e estridentes.

 

A artista faz parte da geração formada nos anos 1950 pelos eventos promovidos por uma série de instituições culturais criadas no imediato pós-guerra em São Paulo, com destaque para o Museu de Arte de São Paulo, inaugurado em 1947, o Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1949, a Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1951, e a Biblioteca Municipal de São Paulo que, naquele momento, sob a direção do crítico Sérgio Milliet, funcionava como um centro cultural, reunindo jovens em torno de sua coleção de livros e revistas de arte. A bibliografia sobre as estratégias dessas instituições para promover o abstracionismo no Brasil, no contexto da retomada das vanguardas artísticas no cenário internacional, é bastante extensa. Por meio de cursos, palestras e exposições, elas procuraram educar o público brasileiro para apreciar a arte moderna, sendo que, naquele contexto, o abstracionismo era sinônimo do que havia de mais “avançado”.

 

À época, Farah era uma jovem artista que ganhava a vida como professora de Geografia na cidade de Getulina e passava os finais de semana na capital paulista para visitar o irmão, ter aulas na Associação Paulista de Belas Artes e ir aos museus. Em pouco tempo, ela foi apresentada a Samson Flexor, pintor moldavo que havia se formado e atuado em Paris, nos anos 1920 e 1930, até imigrar para São Paulo, em 1948, onde se tornou um dos primeiros a realizar e a defender o abstracionismo no Brasil. Ao frequentar o Atelier Abstração, onde Flexor lecionava pintura, Farah ratificou sua preferência pela arte abstrata, que a acompanhava desde a adolescência e que agora ela observava nos museus. Na mesma época, a artista também conheceu e passou a frequentar o ateliê de Mário Zanini, artista inicialmente voltado para a pintura de paisagens, ligado ao Grupo Santa Helena, que, na década de 1950, se dedicava também ao abstracionismo. Em paralelo, ela começou a mostrar suas próprias abstrações em edições do Salão Paulista de Arte Moderna, que acontecia na Galeria Prestes Maia, e em exposições organizadas pela Associação Paulista de Belas Artes.

 

Desde aqueles anos de formação, Farah trabalhou constantemente com pintura, desenho e colagem, tendo como foco as pesquisas cromáticas em torno do cinza neutro quase sempre aliadas à geometria. Durante décadas, ela expôs seus trabalhos no Brasil e no exterior, e manteve contato com críticos e intelectuais interessados em sua produção, como José Geraldo Vieira, Theon Spanudis e Mario Schenberg. Mesmo assim, o reconhecimento de seu trabalho pelo sistema das artes nacional é tardio. Como muitas mulheres artistas, após o casamento e o nascimento dos dois filhos, nos anos 1960, Farah precisou dividir seu tempo entre a produção artística, a família e as aulas de arte que ministrou entre as décadas de 1960 e 1980, em sua casa, em São Paulo. Dado o volume de obras produzidas nestes anos, tudo indica que ela preferiu adensar suas investigações pictóricas a se dedicar à promoção de uma carreira artística profissional.

 

“A composição é a arte de arranjar de forma decorativa os diversos elementos que o pintor dispõe para exprimir seus sentimentos”,[1] escrevia Henri Matisse, em 1908, ao argumentar que a expressividade de uma obra estava, antes de tudo, nas relações entre os elementos visuais em si (formas, cores e linhas). Nos princípios da história do abstracionismo no Ocidente, o vínculo entre abstração e decoração não era visto como um sinal de frivolidade, mas como conquista de um território livre para experimentações formais até então limitadas pelo compromisso com a representação. Neste contexto, a arte abstrata muitas vezes foi vista como consequência lógica da própria arte moderna, uma vez que esta teria se caracterizado pela autonomia das artes visuais em relação às aparências do mundo.

 

Paradoxalmente, na tradição ocidental, a invenção do abstracionismo esteve vinculada tanto à expressão de uma necessidade espiritual dos sujeitos (na concepção de Kandinsky, por exemplo), como ao desenvolvimento das ciências. Estas possibilitaram novas formas de ver o mundo por meio de invenções como a luz elétrica, o automóvel, o microscópio e os aviões. Ou seja, na história da arte moderna, a abstração foi explicada em termos tanto metafísicos quanto materiais (uma vez que a modernidade conferia uma aparência abstrata às cidades). Foi explicada como expressão máxima do individualismo e como sendo a expressão de uma linguagem universal. Vale dizer que, nos dias de hoje, a pretensão de universalidade da arte moderna é entendida como uma estratégia de colonização cultural e afirmação de poder do Ocidente sobre outros povos, uma vez que o parâmetro do que foi considerado como “civilizado” e “universal” foi o homem branco europeu. Ainda assim, diferentes formas de abstracionismo, ligadas a tradições culturais das mais variadas, continuam a se fazer presentes na produção contemporânea.[2]

 

Em sua extensão e variedade, o trabalho de Farah se relaciona com os propósitos dos primeiros abstracionistas europeus, no início do século XX, ao mesmo tempo que constitui uma pesquisa que teceu seus próprios parâmetros e objetivos à medida que foi sendo desenvolvida. Pautada a princípio nos estudos do químico francês Michel Eugène Chevreul sobre a percepção das cores no século XIX, Farah desenvolveu uma teoria própria denominada Neutros da teoria da cor. As ideias de Chevreul, reunidas no livro Sobre a lei dos contrastes simultâneos, teriam sido inspiradas pela pintura impressionista, e inspiraram de fato o divisionismo de Georges Seurat. Em resumo, o cientista francês concluiu que a percepção das cores depende de um contexto cromático, ou seja, o verde parecerá mais vibrante ao lado do vermelho do que ao lado do azul; um mesmo preto parecerá intenso e consistente ao lado de cores claras, e desbotado ao lado de marrons e outros tons escuros. Farah partiu da lei dos contrastes simultâneos de Chevreul para chegar aos seus cinzas neutros. E, como descrito anteriormente, a artista então criou novas tonalidades a partir do acréscimo de gotas de branco aos inúmeros tons guardados em seus cinzas.

 

O vínculo com Chevreul é evidente nos trabalhos da série Oposta, de 1973, em que a artista cria contrastes cromáticos intensos por meio da justaposição de formas e matizes. Numa das pinturas do conjunto, Sem título (da série Oposta), 1973, Farah sobrepõe degradês que vão do amarelo ao roxo-escuro, quase preto, passando por laranjas, vermelhos, verdes e marrons. A tela remete ao grau de liberdade e experimentação almejado por Matisse ao investir no caráter decorativo da arte moderna. Nela, Farah constrói dois quadrados porosos e abertos combinando noções contraditórias de continuidade e contraste, coesão e suspensão.

 

A individual de Habuba Farah na galeria Gomide&Co reúne pela primeira vez trabalhos realizados entre os anos 1950 e 2023. Porque a luz se propaga em linha reta, nesta exposição, a geometria aparece como a forma mais adequada para ordenar uma imensa pesquisa cromática centrada na relação entre tons e contrastes. Atenta à combinação entre luzes e formas, a artista experimenta o ilimitado por meio da pintura.

 

 

Heloisa Espada é professora de história da arte e curadora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo.

 


[1] MATISSE, Henri. Notas de um pintor, 1908. In: CHIPP, H. B. Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 128.

[2] Atualmente, a exposição Direito à forma, com curadoria por Deri Andrade, Igor Simões e Jana Janeiro, em cartaz em Inhotim, apresenta obras de trinta artistas contemporâneos, negras e negros, que trabalham com abstração.