Advânio Lessa: Redemoinho não leva pilão

Março 7 - Maio 4, 2024

Redemoinho não leva pilão

 

“Quem é forte pode abalar-se, mas não é destruído pela tempestade”.

Mãe Stella de Oxóssi, comentando o provérbio iorubá O redemoinho não leva o pilão

 

“Nós, caminhando pelos penhascos, atingimos o equilíbrio das planícies.

Nós, nadando contra as marés, atingimos a força dos mares.

Nós, edificando nos lamaçais, atingimos a firmeza dos lajeiros.

Nós, habitando nos rincões, atingimos a proximidade da redondeza.

Nós somos o começo, o meio e o começo.

Existiremos sempre, sorrindo nas tristezas para festejar a vinda das alegrias. Nossas trajetórias nos movem. Nossa ancestralidade nos guia”.

Antônio Bispo dos Santos, em cerimônia de celebração de seu legado

 

“Às vezes a palavra não vem do cheio, vem do vazio”.

Advânio Lessa, em conversa de trabalho

 

 

O tempo das roças carrega muitos começos, meios e começos, como pudemos aprender com as palavras de mulheres e homens como Laura Mariah dos Santos, Antônio Bispo dos Santos e muitos outros mestres que não conhecemos o nome e vivem em cidades e florestas de todo o Brasil. Estão também ali, nas paisagens montanhosas de Lavras Novas, distrito de Ouro Preto (MG), convivendo em vales férteis, cachoeiras e estradas exigentes. No coração de um desses lugares está a agrofloresta onde o artista agricultor Advânio Lessa cultiva, nos espaços entre árvores centenárias e recém-nascidas, algumas ruas repletas de mandioca, abacaxi, imensas amoras silvestres, bananas, abóboras, cafés e tudo mais que couber na imaginação, na boca e na barriga de quem estiver vivo e com fome. Os alimentos ali querem ser uma comunidade plena de intenções que confluem para o fortalecimento da vida, junto com as formigas, borboletas, felinos, aves, minhocas, lobos, abelhas, lagartos, vespas, lacraias, morcegos, moscas, macacos, cobras, lobos e gentes… tudo vinga e se faz viço.

 

Ao pé da árvore-escola de onde se escuta a vida dos mares de morros e a força da cachoeira distante, Advânio Lessa coloca em fluxo de vida suas sementes, ideias, trabalhos, projetos e imaginários. É na beira dos abismos que se cria a coragem de enfrentar a vida apenas com o necessário, em suas palavras: “de barriga cheia e com um pouco de loucura”.

 

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Museu é o nome que ele deu para essa roça, uma mistura de ateliê com laboratório de pesquisas, refúgio, santuário, lugar de restauro e chão de festa, ponto de encontro e atravessamento entre campos energéticos. Ali, quem chega de corpo presente pode conseguir se deixar integrar a um sistema cheio de circuitos, abertos ou fechados, em geral interligados pelos diferentes tempos e espaços que os constituíram e seguem modelando o lugar.

 

A instalação Redemoinho não leva pilão é como um espelho desses tantos circuitos que vibram na mata e que marcam os processos de criação do artista. Trabalho inédito criado para sua primeira exposição individual em São Paulo, veste em seu nome a celebração do futuro ancestral anunciado por Ailton Krenak e abençoado por Mãe Stella de Oxóssi, reconhecendo a força de vida que nos trouxe até aqui e agora e nos levará além, mesmo quando já não formos mais esse corpo de hoje.

 

O circuito criado pelo artista liga a agrofloresta-museu à sala de exposições da galeria Gomide&Co e as ruas da cidade de São Paulo, num fluxo de energia em movimento que atravessa as paredes e a transparência de sua fachada. O caminho que vemos tem seis esculturas da série Nascimento (2010-2015), conectadas por tramas de cipó a dois pilões e uma taça de onde escorrem flores de cipó e grãos de café em sua forma de fruto seco. As trilhas que não vemos com os olhos estão no corpo de quem as decide percorrer com a expansão de suas consciências.

 

Para o artista, o trabalho começou a ser criado com a faísca de vida que levou à geração das sementes de cada uma das árvores de Candeia e Eucalipto que brotaram e se desenvolveram, como os cipós São João e Alho e o café, cultivado por ele mesmo em sua roça e bem cuidado em bancadas ao sol por meses, no quintal de seu ateliê. O processo de criação que o levou a reunir ao longo dos anos cada um dos elementos e suas existências variadas faz parte de um conjunto de encontros que criou com sorte e intenção em suas caminhadas e expedições na mata, seguidos de uma rigorosa agenda de tarefas.

Para a obra existir como a vemos, foi preciso, ao longo de anos: escolher e transportar da mata as madeiras já sem possibilidade de vida como árvore, cumprir um cronograma de manejo sustentável dos cipós respeitando ciclos de desenvolvimento, preparar as madeiras e cipós em ciclos de secagem-limpeza-hidratação-estocagem, realizar com ferramentas os procedimentos de dar forma e acesso às diversas texturas possíveis de cada material, interligar as partes de cada movimento das peças, modelar com cola e serragem parte de seus corpos, tratar os materiais para ampliar sua durabilidade, hidratar todas as partes do circuito com cêra de carnaúba, buscar as peças necessárias para a realização do fluxo do circuito criado. E assim, ao longo de um tempo que pode ser contado de várias maneiras, a depender de cada ponto da narrativa em que nos fixarmos, a instalação passa a interagir com o ambiente em que é plantada temporariamente, movimentando fluxos de vida e abundância como uma cornucópia de geração de vida em diversidade. A roça plantada no chão da exposição nos lembra de que não há adversidade que possa vencer a força do que é vivo e escolhe viver.

 

A obra foca no cultivo de um vegetal altamente inteligente que se faz presente diariamente em todo o país: o café. Marcando radicalmente a história da Avenida Paulista, a planta é considerada mágica em muitas tradições religiosas. Está nas garrafas térmicas das lavouras, nas mesas de casas, padarias, restaurantes, escritórios, salas de trabalho e nas calçadas da cidade, movimentando energias econômicas e interferindo nos ciclos de atenção há séculos, passando pelas mãos de quem planta, transporta, faz e bebe, gerando energia, atenção, recursos vastos e relações de poder férteis, complexas, cheias de risco e contradição.

 

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Como nos quilombos e aldeias deste país, Redemoinho não leva pilão é um convite de Advânio Lessa para fortalecer os fundamentos pró-vida que precisam ser implantados nas tramas dos sistemas de trabalho humano em torno da agricultura que produz comida. Para o artista, o pilão pode ser uma metáfora dos processos de educação e do poder transformador do gesto e do pensamento intencional humano, que poder reparar, transformar e restaurar o que já foi – e segue sendo – muito oprimido, violentado, explorado, ameaçado e desafiado em suas potências de vida. Lessa costuma dizer que, em seus processos de educação com a arte e a terra, “gosta de conversar e aprender com as histórias dos minerais, insetos e animais que coexistiram temporariamente com os materiais que usa em suas obras nas camadas abaixo da terra, sobre ela e debaixo das estrelas e planetas que estão sendo com a gente, nessa vida”.

 

Trabalho que é um testemunho das possibilidades de fartura e abundância disponíveis para quem quiser chegar, Redemoinho não leva pilão é também um manifesto de que nós somos, hoje e aqui: não há violência nessa vida que possa podar em definitivo o amor que constitui nossa essência, essa força de transformação que atravessa nossos corpos presentes e vivos. Em gestos reparadores de cuidado, como comunidades educativas, temos o poder de restaurar vidas, relações, circuitos e sistemas. O caminho se faz em nós. Somos o pilão, o café, o cipó, a árvore, a arte e a comida.

 

Valquíria Prates, março, 2024.

 

 

Valquíria Prates é curadora, pesquisadora e educadora. É mestre em Políticas Públicas de Acessibilidade (USP) e doutora em Artes e Mediação Cultural (UNESP). Atualmente, é curadora do Instituto de Arte Contemporânea de Ouro Preto (IA), consultora de Arte e Mediação Cultural do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM SP) e colaboradora em projetos do Pólo Sociocultural Sesc Paraty, do Centro Cultural do Cariri (CE), do Instituto Moreira Salles (SP) e da Fundação Roberto Marinho (RJ).