SP–Arte Viewing Room 2021: Still life: formas de tanger o tempo

Junho 9 - 13, 2021 

Natureza-morta, still lifestilleven: o canônico gênero da pintura se desdobra, desde o século XVII na Europa, em inesgotáveis investigações. Sendo explorado não só na tela, mas em esculturas, instalações, fotografia etc., podemos atestar o seu vigor e atualidade com as obras que a Bergamin & Gomide selecionou para o OVR da SP- Arte 2021. Artistas tão distintos quanto Mira Schendel, Francisco Brennand, Glauco Rodrigues, Amadeo Luciano Lorenzato, Rivane Neuenschwander, Tiago Mestre, entre outros, se encontram ao se debruçarem sobre um mesmo motivo: interceder, reinventar, reelaborar objetos e elementos inanimados e de uso comum.

 

O crítico Meyer Schapiro, em texto de 19681, defende que, para além do interesse formal que os artistas nutrem em relação aos objetos em repouso do still life, há aspectos simbólicos e afetivos que transcendem o estudo sobre contornos ou a incidência da luz. A escolha desses objetos, o seu contexto, o estado em que se encontram, a paisagem com a qual se relacionam, a linguagem usada — tudo isso adiciona camadas de significação que enriquecem o sentido e a leitura das obras.

 

No século XVII, a supostamente simples reunião de plantas, frutas e suntuosas louças poderia indicar nada além de um estudo de composição, mas os atributos de cada um desses elementos retratados não raro buscam deflagrar a ação do tempo (frutas apodrecendo, folhas secando) e o vazio que consistiria no apego às coisas vãs, materiais, aos cintilantes jarros que estão ali para lembrar que a prata brilha, mas que tudo passa (pensemos em vanitas memento mori).

 

Já para Cézanne, as famosas maçãs que povoam suas inúmeras pinturas dentro desse gênero têm história, que Shapiro traça desde a tela Le Berger Amoureux (erroneamente chamada de Le Jugement de Pâris, 1883- 85) para discutir a sua presença enquanto figuração do erotismo e do desejo, para além dos atributos formais. No século XX, por sua vez, Giorgio Morandi se destaca como pintor de still life ao se dedicar incessantemente à composição de jarros e garrafas cuja elegância e apuro do olhar inspiraram um sem-número de artistas. Isso se evidencia nesta seleção com as obras da série que Francisco Brennand fez em sua homenagem e com as garrafas de Mira Schendel, que em outras pinturas, sobretudo da década de 1950, explicitava sua grande influência nascomposições e cores que explorava. Ainda que Morandi fosse um observador e pintasse objetos do uso comum, o fundamento do seu interesse se encontrava em todo o sentido que pode ser agregado a elementos banais, ao real. É ele quem diz: “Eu acredito que nada pode ser mais abstrato, mais irreal, do que aquilo que podemos ver. As coisas não possuem um sentido intrínseco, mas os sentidos que atribuímos a elas.” Daí a melancolia, o silêncio e a elegância que suas “simples” garrafas podem emitir.

 

Dessa forma, as obras aqui selecionadas buscam corroborar a leitura de que a escolha dos artistas por dialogarem com um gênero tão tradicional dentro da história da arte conjuga justamente o interesse de se apropriar dos seus motivos, acima enumerados, integrando- os aos seus próprios recursos expressivos. Isso explica o efeito diverso que a abundância das frutas de Lorenzato e a síntese das frutas de Schendel causam no espectador; assim como as garrafas em cerâmica de Brennand, ainda que peças escultóricas, por vezes nos

soam menos sólidas do que aquelas de Giorgio Morandi que o inspiraram. Ou, ainda, encontramos entre a tela de Wilma Martins e o Vaso (2020) de Tiago Mestre duas maneiras distintas de trabalhar fundo e volume. Já Rivane Neuenschwander revisita o início dessa tradição ao interagir com o tempo em Still-Life Calendar (2000) — e Maria Leontina,no entrelaçamento de cores que promove em Natureza Morta (1951), explora a sua paixão pelas coisas do mundo, como comenta em entrevista de 1979 para Walmir Ayala: “Desde menina eu me apaixonava pelos objetos como os outros se apaixonam pelas pessoas.”

 

Still life poderia querer dizer, portanto, formas de tanger o tempo, o espaço e os elementos do cotidiano, deslocando-os e dando a ver alguma novidade. É o que a Bergamin & Gomide deseja demonstrar ao selecionar obras que datam de 1948 a 2020 e configuram um apanhado de releituras e diálogos com esse gênero.

 

 

1 Meyer Schapiro, The Apples of Cezanne: An Essay on the Meaning of Still-life (1968)