Francisco Brennand 1927-2019

Brennand criou, ao longo de 50 anos, um universo próprio, com sede na sua Oficina Brennand, localizada no bairro da Várzea, em Recife. O artista marcou definitivamente a paisagem da sua cidade e conquistou um espaço único na arte brasileira, quebrando preconceitos e demonstrando o quão longe a escultura em cerâmica pode ir em termos de experimentação e legitimidade enquanto obra artística. Homem recluso, aplicado e erudito, o progressivo reconhecimento que Francisco Brennand obteve ao longo de sua carreira é fruto de um trabalho que ocupou e preencheu toda a sua vida, trazendo questões profundas e que dizem respeito a todos nós.

 

A natureza, para Francisco Brennand, é a história de um desejo que se reproduz, e dizia: “não só o artista, mas todo ser humano, experimenta uma inquietação sobre o enigma que envolve a existência”. Brennand investigou essas questões por meio de seu trabalho artístico, que envolve elementos e temas primordiais como: terra, fogo e ar; mito, sexo e vida. Iniciou sua carreira como pintor, prática artística que jamais abandonou, mas foi no trabalho com a cerâmica que o seu universo criativo se expandiu, ganhando dimensões monumentais. Em sua primeira viagem à Europa, no ano de 1949, deparou-se com as cerâmicas de Picasso, Léger, Matisse e Miró, foi uma experiência estética que lhe fez superar certa resistência que sentia em relação a esse suporte, que considerava menor. Desde então, apropriou-se da cerâmica para criar um conjunto da obra singular.

 

A partir do ano de 1971, o recifense iniciou a sua intervenção no espaço da Cerâmica São João, antiga fábrica de cerâmica fundada por seu pai, criando o que conhecemos hoje como a Oficina Brennand. Espécie de obra site specific, é lá que vemos o imaginário do artista em ação, e adentramos um templo em que os deuses são aves, que são pernas, que são falos. Essa multiplicidade de figuras nas quais uma obra pode se desdobrar é um dos elementos mais enriquecedores do seu trabalho. Em seu templo, Brennand reúne entidades que atravessam eras, combinando referências da antiguidade clássica, como as cabeças de Édipo Rei (1984), Antígona (1978), Palas Atena (1987), do Imperador Romano Calígula (1981), entre outras. As referências do que reconhece como o seu “entorno vegetal”, como lagartos, serpentes, aves e frutos de espécies de sua autoria, normalmente conjugam o que Marco Aurélio de Alcântara entendeu como “interpenetrações morfológicas” entre o animal e o vegetal.

 

Contemporâneo de importantes pensadores pernambucanos, Brennand colaborou com o amigo Ariano Suassuna na criação do figurino para a primeira montagem cinematográfica de O Auto da Compadecida, em 1968; produziu o mural cerâmico da Batalha dos Guararapes (1961-1962) com poemas de Cesar Leal e Suassuna, que se encontra na Rua das Flores, em Recife; entre outras obras públicas que transformam a paisagem da cidade de Recife, como o Parque das Esculturas (2000), parte do projeto “Eu vi o mundo... Ele começava no Recife”, que conta com quase 100 obras do artista, localizado no Marco Zero.

 

Muito se fala sobre o apelo erótico dos trabalhos de Francisco Brennand, mas o que o artista reivindica é o seu caráter sexual primitivo, em uma investigação sobre o impulso reprodutivo da natureza, e não sobre a fantasia dos homens. Por isso, encontramos em suas “interpenetrações morfológicas” tal apelo, visível entre suas obras mais conhecidas, como a sua leitura de Leda e o Cisne (1980), os Pássaros Rocca que se multiplicam no topo das muralhas de sua Oficina, a fonte Vênus Sequestrada lá construída, entre tantos outros. Estende-se por todo esse percurso a sua preocupação quanto ao enigma da vida, que também se figura nos repetidos ovos em cerâmica vitrificada que produziu ao longo de sua carreira, como o Ovo II (1981) e o Ovo VIII (2002) e os intitulados Ovo da Serpente, que também produziu atravessando os anos, da década de 1970 em diante. A partir desses trabalhos, o grande poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto escreveu o poema “A Francisco Brennand”, que termina assim: “Prende o barro brando no ovo / de não sei quantas mil atmosferas / que o faça fundir no útero fundo / que devolve a terra à pedra que era”. João Cabral entendeu como Brennand implicava a matéria a partir dos problemas trazidos pelas suas reflexões: ao trabalhar o barro para que vire uma forma rígida, rememora do que um dia fora, faz a matéria reviver a sua origem, quando era pedra e rocha. Eis o seu modo de explorar o enigma da existência.